A Rachelzinha, quando conheceu Demócrito Rocha
“Minha graciosa Majestade: Quero primeiro dar-lhe os parabéns calorosos pelo triunfo que sua bela inteligência de mulher culta alcançou sobre a dolorosa mediocridade de nossas melindrosas. Nada mais justo que o ato das classes estudiosas do Ceará, elegendo-a. Mas, agora que vais ter sobre a fronte o diadema real, pergunto-me se são de fato os parabéns que lhe devo dar. Não os acha mal cabidos, dada a atual desvalorização do sangue azul? E já pensou quantos inconvenientes acarretam atualmente o cetro e a coroa?(...) É por isso que avento a ideia de lhe mudarem o título: e em vez de ser chamada ‘Sua Majestade Suzana I, Rainha dos Estudantes Cearenses’, proclamem-na ‘Chefe do Soviet Estudantal do Ceará’”
Rita de Queluz (O Ceará, 1927)
A “Rita”, ou melhor, Rachel de Queiroz, tinha apenas 16 anos. Enviara, de Quixadá, ao diretor literário de O Ceará, Demócrito Rocha, em seus 39 anos, uma “carta aberta”, datilografada em uma Corona, versando sobre a eleição da primeira Rainha dos Estudantes Cearenses, a também escritora Suzana de Alencar Guimarães — título este que seria concedido a Rachel, três anos mais tarde. Demócrito não somente a publicou, mas pediu mais, e ela mandou. A “Rita de Queluz”, como assinava, passou a ser frequente na folha. Na época, chegaram a crer tratar-se de um homem ou, quem sabe, uma das raras escritoras de Fortaleza, mas Jáder de Carvalho assegurava: “era a filha mais velha de Daniel e Clotilde!”
Um dia, Daniel levou a filha para conhecer a redação do dito jornal, localizada quase ao lado da Igreja do Patrocínio. Ela nos conta: enquanto seu pai conversava com o Ibiapina, se dirigiu devagarzinho pelos assoalhos do sobrado em direção a um “homem de cabelo revolto, olhos salientes, inteligentíssimo, boca de riso fácil”... era o “Barão de Almofala”, ou Demócrito — o mesmo que dizia que a autoridade maior do estado tinha a alma menor que seu pé; que criara o famoso bordão “Besteira, Jorge”, gozando o filho do rancoroso presidente, e que escrevia as “Notas do Dia”, as mesmas lidas pela família de Daniel todas as tardes: “Era só um jornal e, como todos queriam ler ao mesmo tempo, o problema se resolvia com a leitura feita em voz alta pelo mais velho” —, pensava, naquele momento em que ele se levantou da cadeira e, estendendo-lhe a mão, perguntou: “Então, você existe mesmo?”
Depois disso, não teve dúvida, seriam amigos. Ela já sabia que ele “era o padrinho, o irmão mais velho, o companheiro diário e o crítico condescendente de quase todos os aprendizes de literatura e de jornalismo em Fortaleza”. Daí passou a integrar a redação, sendo responsável pela página literária, a “Jazz Band”, feliz da vida, a tecer, inclusive, o folhetim A História de um Nome, até que O Nordeste, jornal da Arquidiocese de Fortaleza, crendo ser um escândalo a presença de uma mulher, principalmente tão moça, naquele “ambiente”, pôs-se a publicar artigos que fizeram Matos Ibiapina, em acordo com Daniel, tirá-la de lá, publicando ainda um perdão à família.
Demócrito não se conformou com aquilo e logo que criou o seu próprio jornal, meses depois, a convidou para escrever: “era com ele, agora!” E, de fato, foi O POVO, em 1928, a defender Rachel de Queiroz das novas críticas de O Nordeste à moral da professorinha recém-saída do colégio Imaculada da Conceição: “[...] Não estando no tempo inquisitorial, vivemos num regime de liberdade de crenças em que, portanto, o intelectual pode e deve ter o direito de externar as suas opiniões.”, gritava o editorial assinado por ele e outros intelectuais da época.
Demócrito reunia em torno de si os “modernos”, mas também se cercava dos “passadistas”. Rachel o ajudava nesse ponto, garantindo a sua presença, a princípio “arrastada”, aos serões do Salão Juvenal Galeno, um dos mais legítimos centros culturais cearenses.
Quando Demócrito criou a Maracajá, lá estava Rachel com seu “Se Eu fosse Escrever o meu Manifesto Artístico”, a defender que o artista tem de ser espontâneo e sincero e, para isso, tem que cantar o que sente a “sua raça”: “Eis porque eu canto o sertão e sol [...]”
Rachel lembra o dia em que conheceu o outro Demócrito, o “dentista”. Ele tratava-lhe um dente e, não se sabe como, deixou escapar o motor, tirando-o rapidamente de sua boca, mas ela, no susto, acabou mordendo-lhe ferozmente o polegar, que sangrou. Ficou envergonhada da reação, mas conta: “[ele] levou depressa à boca o seu dedo ferido, chupou o sangue e disse, piscando o olho, com aquele seu sorriso, como se contasse um segredo: Hummm... Tem gosto de cerveja...” Conta também que ele, mesmo com tanto tempo no Ceará, não se libertara do sotaque baiano de Caravelas, motivo de chacota de amigos quando ele dizia “oitcho” (oito), “lutcha” (luta), a ponto de, um dia, durante um efervescente comício, Demócrito terminaria assim o seu discurso: “A Bahia subiu no ‘conceitcho’ nacional!”. Ela, na plateia, batendo palmas: “Muitcho bem! Muitcho bem!”. Todos em volta riram, enquanto o orador descia em sua direção a puxar-lhe as orelhas.
Mais tarde, a moça escreveria O Quinze, um romance social — parecia natural sê-lo — recebido, por um lado, com críticas pesadas e desconfiança; por outro, com espanto e admiração. Muitas as conjecturas e a negação ao talento jovem e feminino. Entretanto, Rachel novamente encontrou abrigo nas páginas de O POVO, a divulgar fartamente as boas críticas e homenagens que a autora recebia no Ceará e, principalmente, de outros estados “inacessíveis” do país: “Desde o início, O POVO mostrou que viera para ficar. Foi a glória, o jornal criado na raça, na coragem e no talento [...] E a flama por ele lançada, passados já setenta anos [1997], continua impávida, luminosa, invicta. O POVO, já hoje venerando, é estrela maior na imprensa do Nordeste [...]”, afirmou, há 16 anos, Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras e a receber o Prêmio Camões, dona de uma carreira e bibliografia invejável. Foi, assim, até morrer, colaboradora e defensora do jornal que foi a sua escola e, ao mesmo tempo, o seu jardim.