O POVO: 85 anos presente no Ceará VI
Crônica de Raymundo Netto para O POVO
“Eu sou sua constante leitora d’O POVO e, todos os dias, tenho o cuidado de economizar 400 réis para comprá-lo na ocasião da chegada do trem. Além dos excelentes artigos, do serviço telegráfico, da transcrição de capítulos do 2º volume do importante trabalho desse brasileiro extraordinário, desse assombroso Juarez Távora, há a magnífica ‘Secção Grafológica’ dirigida pelo Barão de Almofala. Leio-a continuamente com grande interesse e atenção porque acho-a um excelente desopilativo para o meu espírito que vagueia opresso nesta cidade de carapanãs e de soberbos monólitos, e onde os passatempos e as distrações não quiseram sentar morada. [...] Ao sr. Demócrito Rocha, que nos deu O POVO, uma verdadeira joia do jornalismo cearense; ao sr. Barão de Almofala, que nos proporciona momentos deliciosos com a sua ‘Secção Grafológica’, eu auguro um futuro brilhante, pedindo para o simpático jornal as bênçãos do Céu e o carinho e amor dos filhos da ‘Terra da Luz’” (uma leitora de Quixadá, sob pseudônimo “Sensitiva”, para o “Barão de Almofala”, em maio de 1928)
Pois o tal “Barão de Almofala” era nada mais nada menos do que o irreverente Demócrito Rocha, oculto sob pseudônimo com o qual assinava a “Seção Grafológica” do recém-inaugurado jornal O POVO. O pseudônimo e a secção surgiram, pela primeira vez, quando era “diretor literário” em O Ceará, como confirma o leitor Carlos, de Fortaleza, em abril de 1928: “Fui um constante leitor da ‘Secção Grafológica’ no tempo em que o sr. [Demócrito] colaborava no ‘O Ceará’. Com a sua retirada daquele matutino, privei-me, por alguns meses, desta agradável leitura. Talvez, já com intuito altamente nobilitante, achou que deveria engrossar as fileiras da imprensa independente: ‘eis que surge O POVO’. Agora, como este vespertino possui aquela mesma secção, resolvi endereçar-lhes estas linhas que serão o suficiente para uma análise minuciosa de minha personalidade.”
Demócrito conheceu cedo, em autodidatismo que lhe era comum, os princípios da grafologia. Não sabemos exatamente o que o “fisgou”, qual era o seu interesse, mas julgava-se perito na arte de analisar personalidade e comportamento das pessoas a partir dos signos gráficos. Também não descobrimos a origem do seu pseudônimo, mas sabemos da existência de dois titulares do baronato de Almofala, em Portugal. A grafologia existe desde o advento da própria escrita. Entretanto, o termo foi criado “oficialmente” na França, séc. 19, pelo abade, botânico e historiador Jean-Hippolyte Michon (1806-1881), que defendia que a personalidade e as emoções atuam sobre o gesto gráfico. O ritmo e espaçamento entre as letras e as linhas, a firmeza, organização, “velocidade” e legibilidade da escrita, a assinatura, o uso dos sinais gráficos, a presença de inclinações, as margens, etc., são instrumentais ou pistas utilizadas pelos grafólogos em sua análise.
Demócrito cria nisso e, em 1928, anunciava a “Secção Grafológica” aos seus leitores de O POVO: “Nesta secção, responderemos às consultas grafológicas que nos forem endereçadas por nossos leitores. Quem pretender um estudo de sua letra deverá preencher as seguintes instruções:
a) enviar uma carta de próprio punho ao sr. Barão de Almofala, nesta redação;
b) escrever sem disfarce, com a sua letra natural, em papel sem pauta;
c) juntar à sua carta cinco coupons dos que se encontram abaixo.” [o leitor tinha que comprar, pelo menos, cinco exemplares para conseguir uma consulta com o “Barão”, estratégia de marketing criado por Demócrito para promoção e venda de seu novo jornal].
Logo, a redação viria a receber envelopes de cupons recortados por leitores de Fortaleza, Crato, Cajazeiras, Iguatu, Quixadá, Guaramiranga, Aracati, Senador Pompeu, dentre outras, o que demonstra a boa repercussão de O POVO no Ceará, mesmo ainda em seus primeiros meses.
Mas Demócrito, o “Barão”, muitas vezes confundido com uma espécie de “guru” ou conselheiro de seus leitores-consulentes, não se restringia à análise grafológica. Enviavam-lhe verdadeiras cartas onde versavam sobre dúvidas de vida, pediam conselhos, remetiam-lhe recortes de jornais, páginas de livros, solicitavam de sua “experiência” — o que ele dizia ser “uma flagrante perversidade” — sobre as coisas da vida... e ele respondia, comentava, publicava, debatia. Numa delas, sobre a relação amor e ciúme, Demócrito dizia que num coração não caberia dois amores e que “neste ponto, o amor que não for egoísta será amor sociedade por quotas de responsabilidade limitada ou sociedade anônima por ações, que é pior ainda...” Mais alguns exemplos, a seguir, nas palavras do Barão Demócrito: “Então, Yolanda, quer fazer de um barão, como eu, um feiticeiro? Apenas posso fazer-lhe um retrato grafológico. Adivinhar seu futuro é que não.”; “Sim, sr. Tibiriçá, merceeiro que já leu Eça de Queirós. Dá-me a impressão do velho Ragueneau do Cyrano de Bergerac. Já leu também Rostand (1), através do sr. Porto Carrero (2)? Não há nenhuma incompatibilidade com as cebolas da mercearia... Mas voltemos a sua grafia. O sr. é um homem direito, de rara bondade, altivo, enérgico, assimilador, tendo gosto especial pelas artes e admirável senso estético. [...]. Quer saber de uma cousa, sr. Tibiriçá? Sua letra indica-me que devo estimá-lo.”
Distribuía conselhos: “Tem se pesado ultimamente?”; “Mais cuidado com objetos que lhe pertencem”; “deixe de fumar e evite o álcool.”; “Vitalina? Pois se é vitalina, os solteirões não sabem o que estão perdendo... Porque você, Mirazinha, apesar de reservada e desconfiada, é de uma bondade e ternura capazes de fazer a felicidade do mais ranzinza neurastênico [...]”; Outra lhe escreveu apenas uma interrogação enorme: “Então, só aquele enorme ponto de interrogação desenhado no papel? Grafologia ou aula de pintura? Tenho apenas, para estudo, a data e a assinatura. Trata-se de uma criatura muito vagarosa, sem vontade própria, dominada e incapaz de nutrir afeição sincera por ninguém. Ficou zangada?”
Perguntado por uma jovem se deveria seguir a vida religiosa: “Então, Eleonora, você pensa que eu sirvo para diretor espiritual e que eu tenha o faro das vocações sacerdotais? Pergunte-o ao papá e a mamã. Pergunte a si mesma, depois de ouvi-los. [...] Um pedido: se for sentar praça em alguma ordem religiosa, não se esqueça de rezar por mim, sim?”
Entretanto, sua curiosa franqueza nas análises que fazia demonstra a seriedade com que exercia a sua grafologia, pois, ao contrário, elogiaria a todos, dispensaria palavras melosas a fim de angariar admiração, mas não era o que acontecia. O “Barão” era implacável: “V.Ex.a desconfia de tudo e vive numa eterna dissimulação. Por quê?”; “V.Ex.a é lenta em seus movimentos e fraca de vontade [...] um pouco desarrumada com o que lhe pertence, desconfiada, reservada e sem a menor parcela de gosto artístico ou senso estético”; “falta-lhe energia e sobra-lhe agressividade”; “espírito culto, sem grande inteligência”; “seu ardor é fogo de palha”; “seu espírito é complicado e depressivo, hesitante, agitado e sensível”; “sua preocupação é apenas estar a conforto, não é? Uma rede, um sono...Veja bem a sua vida”, “Você é um trapalhão! Que história comprida, seu Rogério! Sua concepção é lenta e seu espírito é medíocre, confuso... O sr. não tem gosto artístico, não se preocupa com as belezas do mundo, é desarrumado, sem ordem em seus objetos [...]”, dentre outros. Inclusive, ao receber de um consulente a afirmação de que a grafologia seria apenas um “mito”, após a sua análise, responde: “[...] Veja, portanto, que a grafologia não é um mito, como levianamente adiantou... E quer ter mais uma certeza? Mande auscultar-se por um médico de bom ouvido e ouça o que ele poderá dizer-lhe... Conheceu, papudo?”
Às vezes, a polêmica do “Barão” com os seus consulentes percorria as páginas do jornal, no qual, por exemplo, uma “Verbena da Serra” (leitores também utilizavam de pseudônimos) reclamava de um suposto engano do grafólogo, utilizando-se até de frases em francês, língua na qual ele a respondia, citando o grafologista Crepieux.
Com senso de humor, característica sempre reconhecida por seus amigos e contemporâneos, decerto divertia-se no ofício, como quando respondeu à consulente Marília: “Ótima! Excelente! Não é grafologia, não, é uma carta datilografada!”
Mesmo com sucesso, a “Seção Grafológica” não ultrapassou o ano de 1928. O motivo, supomos, seria, primeiro, a dedicação que ela exigia. Demócrito, ainda sem Paulo Sarasate, era diretor, redator, articulista, crítico literário, cronista, editorialista político, enfim, a equipe inteira de O POVO, e pouco tempo teria para dispensar a tantos “apelos”, além de que a secção passou a tomar um espaço maior no jornal, por vezes, quase meia página, passando a ser desvantajosa, comercialmente falando. Encerrando-se aqui, mais um capítulo de O POVO, daqui a 15 dias, Rachel de Queiroz conhecerá o misterioso Barão de Almofala...
(1) Edmond Rostand (1868-1918), teatrólogo francês, autor de Cyrano...
(2) Carlos Porto Carreiro (1865-1932), poeta e tradutor pernambucano, o melhor da obra Cyrano de Bergerac, membro-fundador da Academia Pernambucana de Letras.
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