Crônica de Pedro
Salgueiro, jornal O Povo
A PENA E O PENHASCO
O narrador-personagem de Os Dias
Roubados, de Carlos Vazconcelos, nos faz lembrar as angustiadas criaturas de
Dostoievski, tão empenhadas em justificar seus crimes; sua personalidade
subterrânea nos faz também recordar de um Paulo Honório que possuísse a alma
sombria de um Luis da Silva, logo depois do suposto suicídio de Madalena e do
confessado assassinato de Julião Tavares, nos dois romances, Angústia e S.
Bernardo, de Graciliano Ramos.
O
complexo narrador-autor desta obra instigante vai — trazendo sempre junto o
leitor — construindo (ou seria desconstruindo?) suas prisões exteriores e,
principalmente, interiores.
Texto
de fôlego do contista de Mundo dos Vivos, que, pouco a pouco, pedra a pedra,
vai fincando seu nome neste solo tão árido da Literatura Cearense.
AOS
PORCOS, PÉROLAS
Paralelos aos rios mais caudalosos da
literatura brasileira — mais racionais, beletristas, formalistas,
psicologizantes, vindos de nascentes alencarinas ou machadianas — correm alguns
riachos menos perenes, de águas mais turvas, com jeitões de meros afluentes,
mas que em vários trechos são até mais volumosos e violentos que os vizinhos
mais formosos (se afastam e se aproximam, algumas vezes juntos formam a mesma
várzea). Estas vias secundárias, paralelas e, diversas vezes, coincidentes são,
em sua maioria, mais viscerais, intuitivas, sociologizantes, menos formalistas,
só aparentemente descuidadas na linguagem.
E
num desses riachos ou grotas é que navega o barco literário de Mariel Reis, em
águas que já foram percorridas por Lima Barreto, Marques Rebelo, João Antônio,
Antônio Fraga e Dalton Trevisan, para só falar em alguns afluentes mais
robustos.
Seus
contos trazem personagens suburbanas, muitas delas às margens da dita sociedade
normalizada, oficial. Moram em locais ermos, fazem trabalhos escusos, mas
pensam, amam, agem como qualquer um de outras classes sociais. E mesmo muitas
vezes destacando sobre esses seres marginais seus aspectos mais sombrios,
visualizando neles características quase bizarras, Mariel consegue fugir do
meramente documental, jornalístico ao modo “a vida como a vida é”, do
hiper-realismo urbano tão em moda em nossa literatura hoje, por um lirismo que
vezes flerta com a ingenuidade, com o risível; também dessas armadilhas é salvo
por contidas doses de ironias e uma humanidade às vezes desesperançada de suas
figuras sombrias.
Este
Bordel de Bolso traz uma pequena “Mandala” (mas repleta de sugestões, fetiches
e solidões) emoldurada por duas histórias ambientadas (dois molambos rotos e
sujos) em próstibulos (um deles disfarçado em boate, o outro discreto que nem
uma pensão) mais que corriqueiros em qualquer recanto desse Brasilzão de mãe
treta e pai ladrão. Em “Frank” somos arrastados pelo narrador onipresente atrás
de cada um dos personagens, com ele vamos nos esgueirando por corredores
escuros, palcos mal iluminados, estacionamentos “criativamente utilizados”,
para no final (ou um pouco antes da meia-noite) sermos jogados dentro da
carruagem que foge com os personagens principais desta quase história de fadas
ao avesso. Já em “Bordel de Bolso” um contador onipotente nos sussurra (pois há
um aviso pedindo silêncio) sobre o paciente amor de Valdemar pela proprietária
da “casa de prazeres”, também nos faz escorregar discretos pelas escadas “bem
utilizadas”, corredores povoados e quartos sempre ocupados, todos tão repletos
de carências, medos e sonhos, para no final nos segredar que a vida, apesar dos
sofrimentos, tende a continuar, que as gargalhadas de prazer ressurgirão sempre
depois da pausa da madrugada, quando as cortinas são abaixadas, a casa é
finalmente fechada e os sentimentos (mesmo contidos, angustiados) enfim podem
aflorar em gestos mínimos.
Enfim,
restam aos leitores três contos de esperanças, que procuram pérolas na lama,
como a zombar dos três outros famosos contos do mestre Flaubert.