quarta-feira, 17 de julho de 2013

MOINHO



 
Brennand de Sousa


Duas da matina. Dali viam-se os campanários da Sé. Pertinhos, mas tão inacessíveis! por cima deles as flechas pareciam buscar uma brecha de céu entre as nuvens que se aninhavam. a pouco mais de um metro encontrava-se sua persistente mulher e para esbofeteá-la não lhe custaria mais que dois passos. com desdém desviou o olhar para o interior do cortiço. dois dos meninos dormiam jogados sobre algumas camadas de lençóis sujos. os outros três deveriam estar pela praia de iracema. a menina com certeza. apenas um bico de luz abafada pelo breu que descia pesado sobre seu cubículo. as lamúrias da mulher pareciam preencher tudo mais. quem deveria estar emputecido era ele. padre almério nunca mais lhe chamara pra fazer qualquer serviço na sé, aquele escroto! arranjou outro com certeza. mais barato era que duvidava. velho pirangueiro! agora tinha que voltar pr’esse buraco mais cedo, sem tostão, sem goró...
um colega de biscate veio com a história de que a igreja agora só contratava firma. este mesmo colega, certa feita, afirmou com muita propriedade que a diferença de altura entre uma e outra torre da catedral seria coisa de quinze centímetros! puto! será que por acaso palmilhou aquelas torres? ou anda comendo o padre almério? sei, lá...
depois de ouvir por vinte minutos de sermão continuado da mulher, inquiriu-a pelo destino da putinha michele. e pra onde foi tua filha, afinal? que o deixasse em paz... ele e sua cachaça, porra! pouco importava-lhe os meninos machos. que se fodam... não querem virar gente. alguém precisa virar gente nessa casa! vociferou enfim.
assim? feito você? A mulher de novo. Assim, traste?
voltou a mirar a igreja. de lá, da governador sampaio, a fachada lateral do templo formava um paredão com o início da rua. uma brisa ensaiou acariciar seu peito suado. lembrou certa feita de um lindo dia de sol quando teve de reparar algumas telhas da catedral que haviam sido deslocadas pelo vento de junho. nunca esteve tão perto daquelas flechas. seus pés flutuavam pela cumeeira da casa de nosso senhor, assim... como se caminhassem pelo espinhaço de deus... apenas o céu e o mar de iracema como testemunhos, solto que estava entre os dois azuis.  
os primeiros pingos da noite molharam sua mão e despertaram-no do transe. o cheiro de mofo molhado invadiu o ambiente. chuva. as nuvens já tomavam toda a região. aqui não fico. é dar um jeito de reencontrar neco e guabiraba. com uma chuva dessas eu me viro no cão, mas arranjo pinga. antes de sumir daquele lugar ouve as últimas da mulher... não antes de mandá-la caçar a filha. chovia grosso. missão quase impossível rever os amigos num toró daqueles, mas escapuliu do moquifo.
caminhava pela almino pinto quando percebeu estranha movimentação. primeiro a moto que passava lentamente pela conde d’eu. em seguida a pequena vã vermelha coroada por uma sinaleira amarela parecia alertar para algo importante... marmota? agora a boleia de um grande máquina apontava pela esquina. também em baixa velocidade e... e... em cima... aparecia... que diabo seria aquilo? um bicho descomunal!!! o caminhão passava pelo recorte das esquinas e não terminava nunca. a chuva forte não permitia boa visão, mas se tratava de um enorme e branco animal. trinta metros, por baixo! apertou o passo até o final da rua. a água forte escorria caudalosa pelo lombo daquilo que parecia uma enguia decapitada. o peixe ou o que quer que fosse aquilo, com certeza, estava morto. não esboçava movimento, isso era visível. o porte era realmente inacreditável, extraordinário. noca e guabiraba precisariam ver aquilo. decerto troçariam dele... claro, abençoada cachaça! e o rabo do bicho ainda passava uns três metros da carroceria! teve ímpetos de sair correndo atrás. queria tocar o animal para ter a certeza de que não estava sonhando... acompanhar o veículo enquanto suas pernas permitissem.  o motorista da outra vã – a que guardava o final do cortejo – deve ter percebido seu estado de inquietação. parecia gargalhar na cabine enquanto o olhava absorto no meio da rua... mas aquilo sim, era uma prova viva de deus... prova viva, rapaz! por fim, ajoelhou-se na rua enquanto observava o animalaço distanciar-se lentamente e sumir na curva da sena madureira. mirou a balaustrada da praça dos leões. queria estar por ali para ver o espetáculo de cima.  
nova motocicleta lá pra baixo do mercado central surgia na sua direção, mas essa vinha rápido demais. parecia anunciar coisa nenhuma. somente alguém querendo fugir da chuva. haveriam dois, três? impossível a natureza produzir duas coisas daquelas.
agora, mais que nunca, desejava encontrar noca e guabiraba pra contar-lhes a nova. caiu em procura dos dois desvairadamente. a cabeça cheia, a língua seca. chovia cântaros quando cruzou o viaduto da presidente castelo branco e emburacou pela zé avelino. em qualquer canto, ninguém a mais que ele naquele domingo trevoso. o bicho não desgrudava de sua ideia... branco, liso, gigantesco... inerte.  pra onde o levariam? que destino sofreria o enorme cadáver? como teriam agarrado algo daquele tamanho? onde noca e guabiraba que não apareciam? teriam visto o enorme peixe descabeçado?
O centro alongava-se noite a dentro.

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