Brennand
de Sousa
Duas
da matina. Dali viam-se os campanários da Sé. Pertinhos, mas tão inacessíveis! por
cima deles as flechas pareciam buscar uma brecha de céu entre as nuvens que se
aninhavam. a pouco mais de um metro encontrava-se sua persistente mulher e para
esbofeteá-la não lhe custaria mais que dois passos. com desdém desviou o olhar para
o interior do cortiço. dois dos meninos dormiam jogados sobre algumas camadas
de lençóis sujos. os outros três deveriam estar pela praia de iracema. a menina
com certeza. apenas um bico de luz abafada pelo breu que descia pesado sobre
seu cubículo. as lamúrias da mulher pareciam preencher tudo mais. quem deveria estar
emputecido era ele. padre almério nunca mais lhe chamara pra fazer qualquer
serviço na sé, aquele escroto! arranjou outro com certeza. mais barato era que
duvidava. velho pirangueiro! agora tinha que voltar pr’esse buraco mais cedo,
sem tostão, sem goró...
um
colega de biscate veio com a história de que a igreja agora só contratava firma.
este mesmo colega, certa feita, afirmou com muita propriedade que a diferença
de altura entre uma e outra torre da catedral seria coisa de quinze
centímetros! puto! será que por acaso palmilhou aquelas torres? ou anda comendo
o padre almério? sei, lá...
depois
de ouvir por vinte minutos de sermão continuado da mulher, inquiriu-a pelo
destino da putinha michele. e pra onde foi tua filha, afinal? que o deixasse em
paz... ele e sua cachaça, porra! pouco importava-lhe os meninos machos. que se
fodam... não querem virar gente. alguém precisa virar gente nessa casa!
vociferou enfim.
assim?
feito você? A mulher de novo. Assim, traste?
voltou
a mirar a igreja. de lá, da governador sampaio, a fachada lateral do templo formava
um paredão com o início da rua. uma brisa ensaiou acariciar seu peito suado.
lembrou certa feita de um lindo dia de sol quando teve de reparar algumas
telhas da catedral que haviam sido deslocadas pelo vento de junho. nunca esteve
tão perto daquelas flechas. seus pés flutuavam pela cumeeira da casa de nosso
senhor, assim... como se caminhassem pelo espinhaço de deus... apenas o céu e o
mar de iracema como testemunhos, solto que estava entre os dois azuis.
os
primeiros pingos da noite molharam sua mão e despertaram-no do transe. o cheiro
de mofo molhado invadiu o ambiente. chuva. as nuvens já tomavam toda a região.
aqui não fico. é dar um jeito de reencontrar neco e guabiraba. com uma chuva
dessas eu me viro no cão, mas arranjo pinga. antes de sumir daquele lugar ouve
as últimas da mulher... não antes de mandá-la caçar a filha. chovia grosso.
missão quase impossível rever os amigos num toró daqueles, mas escapuliu do
moquifo.
caminhava
pela almino pinto quando percebeu estranha movimentação. primeiro a moto que
passava lentamente pela conde d’eu. em seguida a pequena vã vermelha coroada
por uma sinaleira amarela parecia alertar para algo importante... marmota?
agora a boleia de um grande máquina apontava pela esquina. também em baixa
velocidade e... e... em cima... aparecia... que diabo seria aquilo? um bicho
descomunal!!! o caminhão passava pelo recorte das esquinas e não terminava
nunca. a chuva forte não permitia boa visão, mas se tratava de um enorme e
branco animal. trinta metros, por baixo! apertou o passo até o final da rua. a
água forte escorria caudalosa pelo lombo daquilo que parecia uma enguia decapitada.
o peixe ou o que quer que fosse aquilo, com certeza, estava morto. não esboçava
movimento, isso era visível. o porte era realmente inacreditável, extraordinário.
noca e guabiraba precisariam ver aquilo. decerto troçariam dele... claro, abençoada
cachaça! e o rabo do bicho ainda passava uns três metros da carroceria! teve ímpetos
de sair correndo atrás. queria tocar o animal para ter a certeza de que não
estava sonhando... acompanhar o veículo enquanto suas pernas permitissem. o motorista da outra vã – a que guardava o
final do cortejo – deve ter percebido seu estado de inquietação. parecia gargalhar
na cabine enquanto o olhava absorto no meio da rua... mas aquilo sim, era uma
prova viva de deus... prova viva, rapaz! por fim, ajoelhou-se na rua enquanto observava
o animalaço distanciar-se lentamente e sumir na curva da sena madureira. mirou
a balaustrada da praça dos leões. queria estar por ali para ver o espetáculo de
cima.
nova
motocicleta lá pra baixo do mercado central surgia na sua direção, mas essa
vinha rápido demais. parecia anunciar coisa nenhuma. somente alguém querendo
fugir da chuva. haveriam dois, três? impossível a natureza produzir duas coisas
daquelas.
agora,
mais que nunca, desejava encontrar noca e guabiraba pra contar-lhes a nova.
caiu em procura dos dois desvairadamente. a cabeça cheia, a língua seca. chovia
cântaros quando cruzou o viaduto da presidente castelo branco e emburacou pela
zé avelino. em qualquer canto, ninguém a mais que ele naquele domingo trevoso. o
bicho não desgrudava de sua ideia... branco, liso, gigantesco... inerte. pra onde o levariam? que destino sofreria o
enorme cadáver? como teriam agarrado algo daquele tamanho? onde noca e guabiraba
que não apareciam? teriam visto o enorme peixe descabeçado?
O
centro alongava-se noite a dentro.
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