quarta-feira, 22 de janeiro de 2014




SÁBADO

Pedro Salgueiro, para O Povo
18-01-2014 

Logo aos sábados me puseram a cangalha: no velho sabbatum que é de brisa vou eu cronicar qualquer assunto de sábados, logo aviso.

Pois só aos sábados, dizem, um homem tem possibilidades de ser feliz, e aos sábados até os deuses descansam em paz... quanto mais um plebeu mais afeito às discritudes de uma segunda ou terça.

Ah, jovens tardes de sábados de tantas (e velhas) alegrias: todas minhas lembranças boas aconteceram exatamente num sábado, acreditem, que foi o dia criado exclusivamente para se sonhar... O descanso é só um pretexto, uma desculpa possível para existir um único sábado...

Aliás, mil são os álibis possíveis (e necessários) para justificar um só sábado: o último sendo o penúltimo, depois de tanto suor não é dia, pois, pra se chorar...

Triste de um morto que defunta num sábado: que terrível pesadelo de se ir numa sexta à noitinha, depois de encerrados todos os expedientes do mundo, para ser chorado num sábado...

Soturno dia jamais, dia de Saturno, saturn’s day, saturday... de se comemorar as boas colheitas da vida.

Único dia sem manhã ou tarde, que ele se basta, apenas sábado... Extrema redundância de se dizer vou te ver sábado à tardinha, diga apenas vou te ver sábado (e ponto, pronto!)... que é o dia próprio para se sonhar, para se esperar um nadinha que seja da vida... Por isso (lembre-se) nunca especifique o sábado, que é apenas um sonho, um estado de espírito...

O sábado, que para Nélson Rodrigues era sempre uma ilusão, pra Leminski nem no céu se atendia um telefone, e que seria a rosa de Clarice e até podia ter gosto de saudade... E tudo podia acontecer pra Vinícius apenas porque ‘hoje é sábado’. Mesmo Caio F. de Abreu, nas dores dos últimos dias, não sentia obrigação de sair num sábado à noite, quem sabe tivesse até o desprendimento de um suicídio.

Ah, o que mais sonho na vida é que todos os dias da semana se transformem em sábados.
Mas saibam de uma coisa, não vou ficar aqui remoendo essas minhas verdadezinhas de sábado (que coisa mais tola teorizar um sábado!), vou é restar por aí, ouvir aquela velha canção de Roberto, reler um parágrafo perdido de qualquer livro de Dalton Trevisan, tomar uma cervejinha em qualquer boteco de calçada, namorar a moça mais danada de minha rua... pois no sábado tudo é possível, mesmo o mais improvável... Porque (como nos lembrou Juarez Leitão) o sábado é apenas a nobre ‘estação de viver’!



terça-feira, 21 de janeiro de 2014



Postagem de Silas Falcão*

19 de novembro de 1988

Como conheci pessoalmente Graciliano Ramos. Anos {19}40. Eu estava no Rio de Janeiro e levava comigo os originais do meu primeiro livro de contos: Vidas Marginais. Queria ouvir a sua opinião, pois o considerava e considero um dos grandes escritores deste país. Conduzia comigo uma carta de apresentação de João Clímaco Bezerra, já seu amigo. Descobri o mestre milagrosamente sozinho, sentando num banco comprido ao fundo da antiga livraria José Olímpio. Lugar quase cativo. Ao lado, uma cadeira em cujo espaldar ele punha o paletó. No momento, amassava um cigarro Selma, tirando-lhe um pouco de fumo.
- É o mestre Graciliano Ramos? - perguntei-lhe.
- Não. Sou Graciliano Ramos ou Graça. Como você quiser.
Perturbei-me um pouco. Entreguei-lhe a carta de apresentação, que ele leu rápido, perguntando-me pelo Clímaco.
- Vai bem.
Já sentado, disse-lhe o que desejava. Que ele, por obséquio, lesse o meu livro e me desse a sua opinião. Não era meu desejo pedir-lhe que o apadrinhasse para uma possível publicação. O seu julgamento bastava-me.
Sentei-me nervoso, catando as palavras.
Graciliano abriu o livro. Leu umas duas páginas. No momento chega a escritora Leoni Tolipan (?), a quem ele passa os originais, com esta observação:
- Veja como o estilo dele é dinâmico.
Chagavam escritores, que o cercavam: José Lins do Rego, Rubem Braga e outros, aos quais me apresentava. Fui-me sentindo gauche, sem encontrar palavras sábias ou inteligentes para uma conversa.
Ao tempo, era profundamente tímido.
Ele marcou um dia da semana para devolver-me o livro. Despedi-me, batendo com a cabeça. No dia marcado, e hora, eu estava lá, e ele também, no mesmo banco comprido, o paletó no espaldar da cadeira, desfazendo igual cigarro Selma. Sua palavra seria minha esperança ou condenação como possível escritor.
Tremia.
Ele apanhou os originais ao lado:
- Li e gostei deveras.
Uma onda de sangue subiu-me ao rosto, literalmente feliz. Disse-me também que sua senhora o lera, gostara muito e me convidava para almoçar com eles no domingo.
Era a consagração!
Foi quando, por encabulamento, temendo encontro difícil com outros intelectuais, cometi a imensa gafe de recusar o convite e convidá-lo para almoçar comigo num restaurante qualquer da cidade. Ele não foi ríspido. Riu, irônico:
- Se você não aceita convite de minha mulher, eu vou aceitar convite seu?
Quase morro, vermelhíssimo.
Contudo, ele sempre me tratou com muita simpatia. Talvez sentisse em mim o matuto que ele fora em Quebrangulo ou Palmeira dos Índios.

*Porta de Academia é uma série de escritos (1987-1994) do Caderno Fame, Jornal O Povo. Sempre aos sábados eram editadas as crônicas de Moreira Campos (1914-1994), contista dos melhores da literatura brasileira. Livro classificado pela Premio Otacílio de Azevedo de reedição, (Secult-CE). Edições da UFC, 599 páginas impressas na Premius Editora. Porta de Academia foi coordenada por Neuma Cavalcante e organização de Isabel Gouveia Ferreira Lima. Edição 2013.

Minha primeira e extraordinária leitura de 2014. Leiam.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014



PROCURAM-SE POETAS, CRONISTAS E CONTISTAS!


Por Silas Falcão


Quando mentalizei um grupo de escritores compartilhando o mesmo livro, ocorreu-me a ideia de criar o Projeto Edições em coautoria. Na reunião da Associação Cearense de Escritores - ACE – no mês de julho de 2012, apresentei aos associados este Projeto em que cinco escritores compartilhariam o mesmo número de páginas, orçamento e gênero literário. Da ideia até final de 2013, foram editados sete livros, beneficiando, por um valor de investimento financeiro baixíssimo, trinta e cinco escritores. Muitos destes inéditos em livros de prosa e poesia. Este é o objetivo principal do Projeto: edição de parte da obra literária do escritor inédito.

Uma inovação que enriquece também o Projeto é a linguagem do marcador de páginas. Em cada edição do livro, o grupo homenageia uma instituição ou pessoa. A Casa de Juvenal Galeno e os poetas Mário Gomes e Horácio Dídimo foram homenageados respectivamente nos livros Toque de acolher, Sinos dos ventos e A janela azul. Poemas em 5 faces homenageará o poeta Barros Pinho.

Participe deste projeto!

luaazuledicoes@gmail.com
Jfsilasfalcao@gmail.com


Abraços, sempre.

sábado, 18 de janeiro de 2014



NOTURNO DO VIGIA

O vigia sorri. Mas numa madrugada sem adereços, o velho das histórias engraçadas não aparece mais. Disseram ao vigia que ele sempre faz isso.

Há dois séculos.


Do livro de microcontos O colecionador de dedos.

Silas Falcão

A Menina da Chuva, de Bruno Paulino na biblioteca do escritor Raymundo Netto.

Comecei a leitura de A Menina da Chuva (Premius, 2013), de Bruno Paulino, num dia de chuva, e a terminei numa manhã de sol.

A obra, a segunda do currículo do autor, assim como a primeira, se trata de uma coletânea de crônicas. Talvez – por vezes chego a duvidar –, o meu gênero literário de preferência.

Asseguro que a sua leitura me foi bastante agradável por diversos aspectos: textos muito curtos e fluentes, permeados por uma poética sensível e colorida – fruto da leitura de Rubem Braga, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Exupéry e, paradoxalmente, de Nelson Rodrigues, autores que cita durante as suas narrativas repletas de árvores, de chuvas, de saudades, de pássaros e borboletas.

Sim, não posso esquecer outro paradoxo: seu Monteiro Lobato, afirma, foi Stephen King, e a sua primeira namorada, o videogame. Coisas do novo tempo, afinal, não posso esquecer que o rapaz, filho de Quixeramobim, tem apenas 24 anos, o que não o impede de estar com um segundo livro e escrever muito bem.

Um detalhe me chamou a atenção, talvez mais especialmente neste exato momento: o otimismo de um "romântico vagabundo". Seus textos são ao mesmo tempo densos e se vestem de fé, de esperança, de alegria, de gentileza, de amor e de respeito aos mais velhos, à cultura, à leitura, à amizade e à natureza, valores que estão, aos poucos, saindo da moda, e que são necessários para que possamos acreditar na vida, num futuro melhor: "Um bom dia começa assim com alegria, com um sorriso bonito no rosto, daqueles que só as pessoas que ainda enxergam borboletas no cotidiano sabem ter." Tipo assim.

Tenho duas alices, alicíssimas – na realidade, três a quatro, contando com minha vó e irmã –, e por isso, entendi e correu pelo "rio de minha alma" a narrativa da menina que chega com a chuva – vez ou outra um serenozinho durante a leitura – e "que faz o mundo ser tão outro e tão bom que nem carece de ser entendido". Muito lindo isso. Adorei.

Enfim, recomendo a leitura dess'A Menina da Chuva, parabenizando não apenas o autor, mas ao também escritor Silas Falcão que me apresentou-lhe e foi responsável pelo seu acompanhamento gráfico – gostei muito da composição harmônica da capa.
Que sejamos, todos os seus leitores lavados por essa chuva e que vivamos tão cheios de sonhos azuis, como aqueles tão luminosos e solares coloridos por Bruno Paulino.


Por Raymundo Netto, escritor, colunista do Jornal O POVO, autor da coletânea de contos  ''Os Acangapebas'', e do Romance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada" . 


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014



A Casa... Vazia!", crônica de Raymundo Netto em homenagem a Moreira Campos (05.01)

Crônica publicada em O POVO em 2008

Pois bem, estava cruzando o Benfica, bairro intelectual e boêmio de nossa Fortaleza, indo visitar um amigo que mora próximo à universidade, quando vi chegar um fusquinha verde no estacionamento aberto de um shopping. Como se fossem fogos despertando a dormência daquela tarde, explodia-lhe o escapamento, traçando no chão uma trilha de doze parafusos. Os taxistas e pedestres riam daquela “arrumação”.
Desceu do carro um senhor magro, com cerca de oitenta anos, rosto marcado e pálido, testa larga e os fios de cabelos brancos puxados para trás das orelhas. Com as mãos na cintura, olhava surpreso para os lados. Leon, um funcionário que trabalha ali há mais tempo, gentilmente tentava explicar-lhe alguma coisa. Aproximei e ouvi quando aquele senhor insistiu, impaciente:
— Mas, meu filho, você é quem não está entendendo... Eu moro aqui!
Não tinha mais dúvida: aquele homem era mesmo oprofessor Moreira Campos!
Leon não sabia o que fazer. Decerto, deveria ser um engano. Fazia já algum tempo que ali funcionava o estacionamento, e antes, ouviu dizer: "havia apenas uma casa antiga onde moravam dois velhos", mas que o shopping havia comprado e demolido a tal casa.
Percebi que o Moreira, então boquiaberto, deixara cair uma rosa que vermelhejava o viço, como se a dizer “para tão longo amor, tão curta a vida''*. Ficou assim, estático, dirigindo um olhar atento e desesperançado para o pequeno rapaz que falava, falava e falava...
— Vamos tentar resumir essa história, faz-se longa demais!, concluiu, deixando o moço a falar com as moscas.
Fly, um cachorro magro que farejava latas de lixo, parou e pôs-se a latir, arranhando a porta do carro com a patinha: Dizem que os cães vêem coisas...
Contrariado e perdido, o professor sentou-se no meio-fio do passeio, ensombrado por um benjamim, apoiou o queixo pessimista no dorso de uma das mãos e divisou aquele shopping, mergulhando em si mesmo, encolhido pela tristeza. “As moscas insistentes provavam-lhe os cantos dos olhos” e ele refletia: “A vida endurece”!
Não via mais a sua casa, mas por dentro, chorava-a. Ouvia as mesmas vozes, o ranger do armador, o tilintar dos talheres na cozinha, a zoada das crianças no corredor, o piano da companheira amada: a Zezé... Passou pela sua cabeça, penso, as alegres reuniões e o papo literário, o café, o convívio com amigos no pequeno jardim de sua casa, a delícia da beira da rede na varanda, o desgasto do piso comido por tantos passos, o gemer de ferros do relógio na parede, o cheiro da terra molhada pela chuva colorida em iluminuras pelas histórias da Natércia, o cheiro do inhame quente, do piqui, da manteiga da terra, os passeios na calçada depois do jantar, e daí, sentiu saudades da penumbra da noite, onde queimava o lume de um cigarro... Desabafou:
— Não tem coisa pior do que voltar para casa e encontrar as portas fechadas... O mestre Tchecov já dizia: “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira”.
As pálpebras franjavam o olhar plangente. Ele resistia, mas não estava sendo fácil:
— Não podia ficar para semente, ora! — caiu num silêncio melancólico, uma sensação perturbadora de não reconhecimento. Sim, aquela casa o abrigara e o acolhera por tantos anos. De lá, do “buraco da jia”, gabinete construído nos fundos da casa, é que vaporaram muitos dos seus fantasmas! Agora, eram apenas lembranças que se perderam no pó das paredes que ruíram. — E os meus amigos, Manelito, Artur Eduardo, Aderaldo, Colares, Caetano, Sânzio, Pedro, Inês e Ângela, se quiserem me ver? A casa era tão minha que até já tinha a minha voz. Eu podia falar pelas colunas, paredes, telhados, janelas... E agora, quando quiserem me encontrar, como farão?
Abeirei-me ao contista, mostrei-lhe um livro de sua autoria que, coincidentemente, trazia. Pedi uma dedicatória. Moreira sorriu, compreendeu meu recado, e tomou-lhe às mãos.


Leu um trecho de "As Três Irmãs":
“(...) tinham mandado demolir o casarão: queriam espaço para o estacionamento de automóveis, mais lucrativo (...) O senhor de cabelos brancos comentava:
— Uma pena!
— Isto era casa para ser tombada. Um patrimônio.
— Não temos tradição.
— Pura verdade.”
Fez-se novo silêncio. Recordou sua vinda para a cidade amada, pigarreando um pouco para depois declamar: “Fortaleza era então provinciana, era menina. Cadeiras nas calçadas e a tristeza dos lampiões a gás em cada esquina”.
— Pois é, professor Moreira, mas essas coisas não acontecem só no Ceará, não, viu? No Rio de Janeiro também deixaram demolir a casa do Machado de Assis.
— Sim, eu sei, estive com ele... Estava casmurro por conta disso! A casa foi-se indefesa. Nem os lidos... Contudo, sempre acreditei que “o destino é o mais fértil dos ficcionistas, aquele capaz de todas as tramas e enredos”. Quis o destino que esta casa não sobrevivesse. O consolo é que “valem todos os momentos que deixamos impregnados naquele chão de mosaicos tão antigo.”
Puxando um cadarço do mocassim e espantando uma mosca que lhe mordiscava o lábio, Moreira olhou a rua, apontava as pessoas que passavam: uma mulher que, arrastando cinco crianças descalças e alegres, trazia um prato enrolado com uma toalha;  o senhor de olhos grandes e brancos, onde as contas do terço corriam-lhe pelos dedos; duas velhas moucas; uma moça de blusa de mangas compridas de bolinhas com o esmalte das unhas roído, e outra mulher que passava agitada com o dedo em riste, bradando: “Meu irmão foi um mártir!”
— Está dando uma de doida, criatura? — perguntou, com sorriso, a ela. Confessou-me: — Toda a literatura que escrevi se inspirou neste território cearense e em sua gente. Sou seduzido pelo ser humano e pelo que ele tem de vulnerável! Aprenda, Raymundo: sem experiência vivida, é raro conseguir-se grande coisa em ficção. Falo da verdade artística. Para ser arte, tem de se recriar o real, caso contrário se torna matéria jornalística!
Levantou-se, tossiu um bocadinho, olhou novamente para o vazio. Dirigiu-se, agora mais tranquilo, ao Leon. Lembrou e falou de Leonete, sua prima-irmã, enquanto o rapaz recebia as chaves e registrava a placa de seu fusca: “XQ - 2992”. Moreira deu uma tapinha no capô duro e recomendou que “tivesse pena do bichinho...” Depois, colocando o braço sobre meu ombro, perguntou se naquele negócio (referia-se ao shopping) tinha, pelo menos, um cinema. Adorava cinema! No outro dia, disse, iria ao Bosque das Letras, tinha tantas saudades das árvores de lá... “As árvores continuam por lá, não? Olha, olha...”
Chegara a noite, as corujas apareceram rasgando mortalha “num cair de asas leves, impressentidas, como num sopro de morte” no alto do vazio que restou.

(*) Último verso do Soneto 88 de Camões

Moreira Campos (1914- 1994) nasceu em Senador Pompeu, Ceará. Contista, fez parte do grupo Clã e é autor de Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), Dizem Que Os Cães Vêem Coisas (1987) e outros. Foi autor da Coluna semanal Porta de Academia (1987 a 1994) no jornal O POVO. Algumas falas e trechos do texto são adaptações e transcrições da produção de Moreira Campos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014





A Vinda-Luz
Jesus era baiano. Nazaré, a mãe, jovem roceira, na incerta noite, deu-lhe à luz, escanchada sobre estrelas-de-jerusalém, à beira de uma levada desalumiada sob o véu de lua nova da fazenda Cabaceiras, na vila de Curralinho. Ali, apenas ela e uma cachimbeira, rotineira de matar buchos, mas que, naquela vez, seria por suas mãos os primeiros afagos e a acolhida do rebento.
Não fosse o destino, três boêmios bêbados a fornicar com umas quengas no meio do canavial, talvez o menino e a mãe não resistissem ao frio, à falta de cuidados e do de comer. Os pleibóis, que nunca viram menino novo, colocaram mãe e filho na carroceria da caminhonete, deixando-os no hospital da cidade, local onde, naquela noite, o seu Zé, um quinquagenário dono de um pequena movelaria, se encontrava à dor de uma gastrite. Solteirão, encantara-se logo daquela cabrita nova e despossuída. Ademanhã, Nazaré, de não ter um travesseiro onde encostar a cabeça, aceitou amasiar-se com o desconhecido.
Contudo, Jesus, para sempre sem nome de pai, era inda menino quando o Zé falecera. A, então, viúva Nazaré deixou as coisas para trás, porque a vida só aprendeu a caminhar de olhos no futuro, e decidiu ir à procura de Salvador, se arranchando num tugúrio qualquer próximo à fábrica Barreto de Araújo, de beneficiamento de cacau, onde conseguira modesta função.

O Sumiço
Em sua lida de manhãs e tardes de operária, não tinha noção do que o filho fazia durante o dia, entregue a sorte e ao olhar muito solícito e pouco atento de umas vizinhas. Sabia, entretanto, que crescia falante, descolado, cheio de ginga e de conversa. Era comum acordar-se tarde, num vagarejo devaneado de mundo, descendo a ladeira do Bonfim com o sorriso frouxo e branco de negrinho safo, com olhos cor de céu de domingo, orgulhoso do brinco de ouro na orelha. As moças, dentre todos, lançavam os olhares desejosos a despertar a ciumeira dos demais rapazes do largo: "Tabareuzim folgado esse..."
Na favela todos conheciam o Jesus da Nazaré, moleque de ser visto em bares e botecos da região — dentre eles o famoso "Candelária" — assuntando com os mais velhos em troca do café da manhã, da broa, do saquinho de peta, jujubas, do PF de lei, ou mesmo por trocados, que recebia com reverência envaidecedora: "Eitcha, meu rei, que obrigado. Mais há Deus pra lhe dar."
Diziam que ele "era de vez" e que contava, sentado em latas de querosene "Jacaré", causos fantásticos da cosmogonia universal, uns remendões de almanaques, gibis, jornais ou de livros infantis e outras curiosidades que aquela baianada sequer sonhava, se rindo demais quando chegavam pela voz daquela coisinha sem eira nem beira. Mas Jesus não se detinha apenas nas historietas fantásticas, não.  Quando a recepção do público esfriava, se punha a falar mal do governador, do prefeito, do fiscal sanitário, dos mata-mosquitos, enfim, denunciava os males de todo um mundo, desde que o citado não estivesse presente, o que agradava a todos.  Tinha dias, porém, que adentrava a noite e, então, Nazaré, destruída da labuta, chegava a casa vazia e sem a ceia posta. Irritada, corria a ladeira a perguntar pelo bruguelo. Para ela, nada pior do que vê-lo em meio àqueles beberrões, cheios até a tampa de aguardente. Sem dó, tomava o filho, lhe torcendo feroz e escandalosamente a orelha na frente da plateia a requerer sua paciência ou a destacar a suntuosa nádega materna. Mas nem adiantava, pois, no dia seguinte, lá estava o danado do garoto a contar vantagem da obra. A mãe descia novamente, chinela na mão, e quando vinha torcer-lhe a orelha ainda inchada o danado lhe oferecia a outra, senão não aguentava mesmo...

Batista
Assim, Jesus cresceu rebelde: sem querer ir à escola, sem cumprir seus horários de jornaleiro, e, mais tarde, rejeitado como reservista do serviço militar. Era de sua mania se opor a tudo que lhe fosse posto. Ria-se dos dogmas, das regras, das leis! Contestava-os numa inadequação terrena  exemplar e absoluta. Já tivera, inclusive, passagens na cadeia, dentre outros motivos, por derrubar dezenas de tabuleiros de camelôs, provocando uma balbúrdia dos diabos, e lavando de acarajés e caruru a escadaria da igreja. O rapaz era espritado, não media palavras, além de frequentar as obscuras rodas de capoeira do mestre Batista — que mais tarde, saberiam, num crime passional, seria violentame nte degolado.

As Tentações
Com receio de seu filho também ser morto, Nazaré, com coração acochado, o expulsou  de casa. Jesus, sem direção, fez o que todo desorientado faz: tomou o rumo do mar! Chegando em frente à foz do Rio Vermelho, subiu no alto farol, encostou-se à lanterna, e de lá passou os dias a observar estrelas mudas numa fogueirinha de papel. Foi uma viagem existencial tão longa de esquecer de comer e de dormir. Seus olhos e ouvidos foram, então, tomados a ver e a ouvir coisas. Foi quando uma menina num vestido de chita floral lhe apareceu. Tinha o sorriso terno, quase divino, e a voz de rouxinol. Percebendo-lhe faminto, cofiou-lhe a barba grossa, e lhe ofereceu pedras, como se fora pão. Ele não quis. Daí, ela colocou-se às suas costas e acariciou as escápulas nuas: "Mas que belas asas você tem, seu moço... Ah, se eu tivesse asas assim, eu me colocaria entre as gaivotas, pularia por sobre as nuvens, eu quereria ser o Sol! Salte, Jesus, salte e voe!". Todavia, vendo a apatia daquele homem entregue ao mais fugaz pensamento, ela se enfureceu. Diante de seus olhos, por final, se tornou mulher, linda, a pele branca a escorrer mel, e se fez nua e pronta a entrega ardente da sua paixão. Mas, de repente, uma revoada de trinta-réis preto e branco partiu para cima da mulher, atacando-a. Ela se pôs a gritar com língua de fogo, estrebuchando-se contra o ataque violento das centenas de aves que, violentas, trinchavam-lhe o corpo. Então, com os pedacinhos de sua carne inda quente no bico, uma a uma pousavam nos lábios de Jesus, alimentando-o. Depois, unidas, carregaram o corpo magro e alquebrado do rapaz, cruzando o encarnado céu quando o sol ajoelhava-se no horizonte , em direção a vila da Praia do Forte.

A Iniciação
A imagem daquele homem carregado por um bando de aves entre nuvens do céu assombrou o grupo de onze pescadores pobres que se encontravam na praia da aldeia da vila. As aves largaram o rapaz no dorso da onda, a sétima, depois da passagem do vento que escancarava as vistas curiosas.
Os pescadores, percebendo que aquele mortiço desconhecido poderia se afogar, partiram ao seu encontro. Sem saber o que fazer, levaram-no aonde sempre se levavam as pessoas doentes daquela aldeota: para a choça de d. Mãinha Purah.
Ela, idosa, quase cega, pequena e artrítica, mas com dons de predição, o recebeu sem espanto. Disse para deitá-lo numa tipoia no fundo do corredor escuro onde, durante duas semanas, o trataria com rezas, limparia as suas feridas e o alimentaria com legumes, caldos  e raízes.
Jesus melhorava a cada dia e, por todos eles, proseava longamente com a velha num telheiro ao lado de sua hortinha, no qual o ensinava a fazer meizinhas, xaropes e outras beberagens caseiras. Também aprendeu a fazer pão e acompanhava a mãinha nas visitas regulares aos doentes e idosos daquela aldeia. Foi quando Jesus tomou conhecimento da miséria daquele povo, sem saneamento básico, sem escola e assistência médica. Acompanhava e consolava as famílias quando da perda de seus anjinhos. Ouvia os reclamos sobre a exploração de atravessadores e comerciantes da vila ou da capital, que tomavam a preço de nada a sua pesca e a produção suada de rendas e redes. Revoltava-se com o abandono da comunidade e a encorajava a resistir, reconhecer e brigar pelos seus direitos. A sua resposta, quase na totalidade, era o silêncio cabal da impotência.
Tomado de angústia e conflitos, quando não cumpria as "visitas de necessidade" com a d. Purah, passava o dia na praia. Sentava-se numa duna branca, onde os pássaros cercavam-lhe na cata de pequenos insetos entre os arbustos, verbena rosas e madressilvas, e emprestava os ouvidos, sempre mais a escutar do que a falar. As gentes o procuravam por curiosidade ou mesmo para lhe contar de seus problemas; outras pediam receitas de lambedor; outras queriam saber se viera mesmo do céu e se de lá podia-se ver anjos; e toda uma sorte de coisas sobre o Céu e a Terra e a mais vã filosofia. O moço era paciente. Com uma latinha velha e uns tocos de carvão torrava tatuís, que catava na arrebentação e comia ali mesmo. Muitas vezes, quedava-se atento assistindo a brincadeiras de meninos com espinhas de peixe ou banhando as tartarugas marinhas trazidas na ressaca de noite furiosa. Chamava as crianças, catava-lhe os piolhos e desenhava círculos na areia, cantarolando: "Que me perdoem se eu insisto neste tema/mas não sei fazer poema ou canção/ que fale de outra coisa que não seja o amor./ Se o quadradismo dos meus versos/ vai de encontro aos intelectos/ que não usam o coração como expressão."(1)
Ao final das tardes, já não estranhavam os pescadores quando ele, finalmente, se levantava e, batendo a areia da calça de algodão cru, se dirigia ao mar. Colhia nos lábios o sal, molhava de brumas os cabelos e, depois de torcer o seu dred, abria os braços a sentir a grandeza do mar na palma das mãos. O sol brilhava alaranjando o seu rosto e o vento, após serpear cada peça de suas vestes, se abrigava numa concha amarrada na cintura, reverberando em voz de canção, enquanto uma nuvem brilhante de cintilantes gotículas azuis arrodeava o seu corpo. Jesus então, numa fala diferente, passava a pregar aos peixes:
"O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e o s pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!"(2)

A Chegada a Vila da Praia do Forte
Foi num domingo que chegou, com seus amigos pescadores, pela primeira vez, à praça grande da vila da Praia do Forte. Os moradores assuntavam por entreouvidos. Sabiam pela massa daquele rapaz misterioso que fazia coisas estranhas, que falava de outros mundos, a cuidar dos desassistidos. Para alguns, um lenda; para outros, um postulante político.
Jesus ganhava no sorriso cor de búzio. Encostava-se próximo às ruínas do castelo Garcia D'Ávila e reunia pessoas a contar histórias de "Era uma vez um Reino... um outro de outro mundo, muito, muito distante..."
Assim, noutras noites, passaram a perguntar pelo contador de histórias, o novo rei daquele castelo em ruínas, a exigir-lhe a presença nas noites claras de luar. E foi numa dessas noites que conheceu a jovem Madá Magdala, uma conhecida periguete filha da região, que, não fosse a intervenção de Jesus, seria violentada por um grupo de jovens baderneiros num samba. Magdala agradeceu e sumiu com a noite, assim como com a estrelas, mas não sem antes de a primeira vez confessar um seu amor.
Quando o forasteiro se pôs a emitir opiniões sobre assuntos da vila, incomodou, afinal, ninguém, é bem verdade, sabia de onde e a que vinha. Aquela história de "cair do céu carregado por pássaros", claro, seria mais uma história de pescador, uma lorota, fruto da invenção dos desocupados e ignorantes. Daí a pouco, ele quase não saía mais da vila, tornando-se um tipo popular, quase folclórico, alvo até da especulação turística.
Era de aparecer em festas, nas quais não era convidado, a distribuir garrafas de vinho; da mesma forma, comparecia a velórios e funerais onde agarrava-se aos mortos, convidando-os a passear — num desses, estava presente o Jorge Amado —; ficava horas na praça, contando histórias para as crianças, outras para as mocinhas românticas, outras para os velhos; não perdia uma reunião da comunidade, onde insurgia-se contra as iniquidades, falando em nome dos desvalidos, prostitutas, travestis, quilombolas, índios, crianças, cães e gatos. Para ele, não poderia haver a felicidade onde reinasse a miséria, a injustiça ou desigualdade. Essa vergonhosa felici dade, cria, era puro egoísmo e hipocrisia.

Judas Queriote
O mistério acerca daquele moço, chamou a atenção de Judas Queriote, um jornalista malsucedido, desesperançado com o ofício e que, desde sua demissão, carregava dívidas de toda a natureza. Viu na história de Jesus a sua remissão.  Então, aproximou-se, logo tornando-se amigos. Conversavam por horas, inibindo os ingênuos e iletrados pescadores da aldeia, ora roxos de ciúmes. O jornalista, admirador febril do peregrino, tomava nota de seus pensamentos, reivindicações e insistia em colher dele alguma tendência política e/ou doutrinária. Mas, embora à primeira vista revolucionário, Jesus nada queria saber de política, de suas estratégias ou de conceitos ideológicos. Não discut ia sobre organização social e política, muito menos a financeira. Nada exigia ou esperava do Estado, nada queria com o poder, não reconhecia sequer o mérito de qualquer nome dentre os eleitos... Para ele, bastava que as pessoas fossem felizes. Elas mereciam isso, simplesmente, por estarem vivas. Certa mesmo era a sua indignação com o sofrimento alheio, com a exploração, a opressão, a violência e a maldade. Não precisava de muito, mas do suficiente. Irritava-se, entretanto, com os poderosos. E ali, com muito pouco, citaria nomes, falaria da exploração do povo e da corrupção do prefeito, dos vereadores, da omissão da Igreja, do padre, dos pastores — "sepulcros caiados" —, do juiz, do dono do cartório, do delegado.
Após exaustivas entrevistas, Judas trancou-se na pousada a redigir o seu aguardado artigo. Poderia ter revisado, mostrado a outras pessoas, pedido opinião, mas não, na sua estúpida segurança, tinha toda a certeza do mundo! Já via seu nome indicado aos grandes prêmios da imprensa brasileira, ou quiçá, mundial. Assim, tomou o primeiro ônibus a Salvador. Apresentou-se ao antigo editor, sendo parabenizado e empregado novamente. O artigo saiu no domingo, publicado em destaque, e o jornal vendeu a barulho, atraindo a atenção da mídia televisiva e radiofônica, além das redes sociais. Todos haviam de querer entrevistar o "Rei-Pescador", cotado, de já, para participação em comerciais de produtos de apelos populares de uma carangueja TV baiana.

O Juízo Final
Ora, as autoridades da vila, obviamente, não gostaram da citação de seus nomes na imprensa. A chegada das emissoras de rádio e televisão, e das revistas internacionais, apesar de aquecer o comércio, os colocava na lama, evidenciando  alguns costumes políticos não muito condizentes com a boa moral. O presidente da Câmara de Vereadores reuniu-se com o prefeito, o padre e o pastor. Criaram um discurso consensual onde acusavam Jesus de ser herege, louco, vagabundo. À noite, reunião fechada na delegacia, a deixa: "Aproveitassem o temperamento intempestivo do rapaz e criassem a situação. Ele tinha de ser preso, desmoralizado, desacreditado. E logo!"
Era noite de Natal. Estava o contador de histórias e os amigos pescadores, como de hábito, comendo azeitonas pretas e passeando por entre os arcos das ruínas do castelo, quando, do nada, uma adolescente desconhecida aproximou-se de Jesus e deu-lhe um beijo na boca. Um grupo de policiais e outros estranhos imediatamente saltaram em cima daquele triste "rei", agarrando-o num descarado flagrante: "Pedófilo! Pedófilo!"
Nem adiantou a resistência dos amigos, o rapaz foi arrastado sob a surra de rebenques até a delegacia, fato assistido com assombro e curiosidade pelos turistas e moradores da vila, sob a luz frenética de pisca-piscas. A capangada distribuía a zoada em notícias: "Abusou de uma criança, o vagabundo!" Ouvia-se da turba: "Que horror", "Pobre menina", "Monstro!", "Tarado!", "Esfola ele!"
Chegando à pequena delegacia, havia apenas uma cela. Nela, um bêbado, o Barrabás, solto para que não houvesse testemunhas para a "lição" de covardia que ali, logo, logo, teria lugar pela mão desmedida dos samangos.
Nuvens negras tomaram o céu, os penduricalhos natalinos sequestrados por um vento rodamoinho se espalhavam pelas pedras toscas. As areias polvilhadas feriam as pernas nuas e cegavam os passantes iluminados apenas por relampejos de uma chuva não concebida. Os morcegos e as corujas corriam feitos loucos para a luz e, dizem, todo o leite azedou.

As Sete Dores de Nazaré
Nazaré, por meio do noticiário televisivo, soube finalmente do paradeiro e da prisão do filho. Temendo por ele, ousou fazer o que sempre se negara: procurar o pai de Jesus.
Adonai, engenheiro que iniciara o ofício na construção de um açude no sítio em que Nazaré trabalhara, era agora um empresário bem-sucedido no ramo da construção civil. Quando soube que aquela mulher de seu passado de aventura estava à porta da firma, suou frio. Mesmo assim, por, talvez, uma curiosidade mórbida, aceitou recebê-la. O encontro marcado por ligeiro aperto de mãos foi de um constrangimento sem tamanho. A mulher nem sentar-se, nem água ou chazinho. Contou direto da sua história e pediu-lhe apoio. Rogou-lhe: "Ele é a sua imagem e semelhança... Não o abandone!"
Adonai foi só silêncio. Tentou abotoar o paletó apertado na barriga. Encaminhou-se ao lavabo, lavou as mãos, enxugou com a toalha o suor da testa e soltou o verbo: "Nazie, me perdoe, mas é o destino dele. De certa forma, convenhamos, foi ele quem o escolheu. Foi ele!"
Nazaré soluçou. Parecia-lhe então que nada havia a fazer a não ser chorar sozinha a dor de seu menino. Adonai, por desencargo de consciência, mandou Gabriel, o seu secretário de confiança, levar a mulher ao encontro do filho DELA. Ao chegar, sem forças, cansada e faminta, encontrou o tumulto formado: "Jesus é morto! Tentou reagir à prisão. Havia um punhal, não teve outro jeito. Fora apenas por defesa própria!", era o que dizia a boca coletiva de uma multidão confusa. Ao contrário dos empresários e de alguns comerciantes que comemoraram o castigo benfeito daquele pervertido, o  poviléu não arredava o pé da porta da delegacia. Acusavam a covardia. Xingavam a escória que mandav a e desmandava na cidade. Nas portas cerradas das igrejas, os punhos só encontraram silêncios. A mãe, desafortunada, só queria saber dele: "Cadê o meu garoto, por favor, cadê o meu menino!" Mas ninguém sabia de nada: o corpo de Jesus sumira misteriosamente!
Caifás, o subdelegado, acusava: "Foram esses vagabundos, os amigos do elemento. Foram eles. Têm hábito de sair por aí levantando defunto. Foram eles que sumiram com o corpo."  De outro lado, Pedro Simão, um dos pescadores, negava três vezes, enquanto amanhecia e o galo cantava. Tomé, acenando um retalho ensanguentado em forma de cruz e a crer apenas no que seus olhos viam, acusava a delegacia de tentar omitir as provas do crime, na tentativa de eliminar a possibilidade de exame de corpo de delito. O padre e o pastor surgiriam apenas na manhã seguinte, oferecendo o apoio e o consolo a ambos os lados, numa resignação silenciosa, contagiosa e conveniente.

A Discípula do Rei
Ao repicar dos sinos de uma fria e incompreensível manhã, Nazaré, sozinha, assistia ao apagar de luzes dos lampiões da praça quando Madá lhe apareceu: "E a senhora é de verdade a mãe do rei?" Nazaré não entendeu, mas, fragilizada, deixou-se levar pela mocinha a contar-lhe as histórias de um reino muito, muito distante, enquanto a radiodifusora disseminava no ar uma canção-lamento: "Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento?/ Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/ (...) Quem é essa mulher/ Que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo/ E deixar seu corpo descansar."(3)

Conclusão Inconclusa
Passaram dias. Os pescadores, em nome do amigo, se reuniam nos coqueirais da aldeia. Todos da comunidade manifestavam, conforme seu credo, a dor da partida tão prematura e da saudade do jovem Jesus: os cristão católicos, os evangélicos, os neopentecostais, os espiritistas e umbandistas. D. Mãinha Purah também sumira, sem levar de casa coisa alguma, deixando-a em portas abertas e, no telheiro, um ramalhete de rosas vermelhas imperecíveis.
Judas, de Salvador, enviou para os pescadores, num envelope, todo o dinheiro que ganhara com o artigo publicado e entrevistas concedidas sobre o anônimo Jesus: "Como poderia saber que isso aconteceria? Acreditava mesmo na força da figura dele perante a opinião pública. Acreditava que o povo apoiaria o meu amigo. Acreditava que poderia conseguir mesmo ajudar a vila pobre da região. Que trágico engano! Sinto muito."
E daí, numa noite estrelada onde os marulhos aqueciam os ouvidos, os pescadores estavam em uma choça com a porta completamente cerrada e, mesmo assim, alguém entrou. "Quem é você? A que vem?", perguntaram. Ele chegou mais perto, preencheu a escuridão de seu sorriso, e mostrou-lhes no corpo as feridas. Da testa seca, entretanto, desaguava um suor que, em terra, convertia-se em gotas de sangue. Os rapazes quedaram-se mudos de pensamentos e palavras, não lhe reconhecendo nem o rosto, nem a voz. Quem era aquele? Até hoje não se sabe.

(1) "Você abusou", de Antonio Carlos e Jocafi
(2) "Sermão de Santo Antônio (aos peixes)", de Padre Antônio Vieira (1654)
(3) "Angélica", de Chico Buarque