quarta-feira, 1 de janeiro de 2014





A Vinda-Luz
Jesus era baiano. Nazaré, a mãe, jovem roceira, na incerta noite, deu-lhe à luz, escanchada sobre estrelas-de-jerusalém, à beira de uma levada desalumiada sob o véu de lua nova da fazenda Cabaceiras, na vila de Curralinho. Ali, apenas ela e uma cachimbeira, rotineira de matar buchos, mas que, naquela vez, seria por suas mãos os primeiros afagos e a acolhida do rebento.
Não fosse o destino, três boêmios bêbados a fornicar com umas quengas no meio do canavial, talvez o menino e a mãe não resistissem ao frio, à falta de cuidados e do de comer. Os pleibóis, que nunca viram menino novo, colocaram mãe e filho na carroceria da caminhonete, deixando-os no hospital da cidade, local onde, naquela noite, o seu Zé, um quinquagenário dono de um pequena movelaria, se encontrava à dor de uma gastrite. Solteirão, encantara-se logo daquela cabrita nova e despossuída. Ademanhã, Nazaré, de não ter um travesseiro onde encostar a cabeça, aceitou amasiar-se com o desconhecido.
Contudo, Jesus, para sempre sem nome de pai, era inda menino quando o Zé falecera. A, então, viúva Nazaré deixou as coisas para trás, porque a vida só aprendeu a caminhar de olhos no futuro, e decidiu ir à procura de Salvador, se arranchando num tugúrio qualquer próximo à fábrica Barreto de Araújo, de beneficiamento de cacau, onde conseguira modesta função.

O Sumiço
Em sua lida de manhãs e tardes de operária, não tinha noção do que o filho fazia durante o dia, entregue a sorte e ao olhar muito solícito e pouco atento de umas vizinhas. Sabia, entretanto, que crescia falante, descolado, cheio de ginga e de conversa. Era comum acordar-se tarde, num vagarejo devaneado de mundo, descendo a ladeira do Bonfim com o sorriso frouxo e branco de negrinho safo, com olhos cor de céu de domingo, orgulhoso do brinco de ouro na orelha. As moças, dentre todos, lançavam os olhares desejosos a despertar a ciumeira dos demais rapazes do largo: "Tabareuzim folgado esse..."
Na favela todos conheciam o Jesus da Nazaré, moleque de ser visto em bares e botecos da região — dentre eles o famoso "Candelária" — assuntando com os mais velhos em troca do café da manhã, da broa, do saquinho de peta, jujubas, do PF de lei, ou mesmo por trocados, que recebia com reverência envaidecedora: "Eitcha, meu rei, que obrigado. Mais há Deus pra lhe dar."
Diziam que ele "era de vez" e que contava, sentado em latas de querosene "Jacaré", causos fantásticos da cosmogonia universal, uns remendões de almanaques, gibis, jornais ou de livros infantis e outras curiosidades que aquela baianada sequer sonhava, se rindo demais quando chegavam pela voz daquela coisinha sem eira nem beira. Mas Jesus não se detinha apenas nas historietas fantásticas, não.  Quando a recepção do público esfriava, se punha a falar mal do governador, do prefeito, do fiscal sanitário, dos mata-mosquitos, enfim, denunciava os males de todo um mundo, desde que o citado não estivesse presente, o que agradava a todos.  Tinha dias, porém, que adentrava a noite e, então, Nazaré, destruída da labuta, chegava a casa vazia e sem a ceia posta. Irritada, corria a ladeira a perguntar pelo bruguelo. Para ela, nada pior do que vê-lo em meio àqueles beberrões, cheios até a tampa de aguardente. Sem dó, tomava o filho, lhe torcendo feroz e escandalosamente a orelha na frente da plateia a requerer sua paciência ou a destacar a suntuosa nádega materna. Mas nem adiantava, pois, no dia seguinte, lá estava o danado do garoto a contar vantagem da obra. A mãe descia novamente, chinela na mão, e quando vinha torcer-lhe a orelha ainda inchada o danado lhe oferecia a outra, senão não aguentava mesmo...

Batista
Assim, Jesus cresceu rebelde: sem querer ir à escola, sem cumprir seus horários de jornaleiro, e, mais tarde, rejeitado como reservista do serviço militar. Era de sua mania se opor a tudo que lhe fosse posto. Ria-se dos dogmas, das regras, das leis! Contestava-os numa inadequação terrena  exemplar e absoluta. Já tivera, inclusive, passagens na cadeia, dentre outros motivos, por derrubar dezenas de tabuleiros de camelôs, provocando uma balbúrdia dos diabos, e lavando de acarajés e caruru a escadaria da igreja. O rapaz era espritado, não media palavras, além de frequentar as obscuras rodas de capoeira do mestre Batista — que mais tarde, saberiam, num crime passional, seria violentame nte degolado.

As Tentações
Com receio de seu filho também ser morto, Nazaré, com coração acochado, o expulsou  de casa. Jesus, sem direção, fez o que todo desorientado faz: tomou o rumo do mar! Chegando em frente à foz do Rio Vermelho, subiu no alto farol, encostou-se à lanterna, e de lá passou os dias a observar estrelas mudas numa fogueirinha de papel. Foi uma viagem existencial tão longa de esquecer de comer e de dormir. Seus olhos e ouvidos foram, então, tomados a ver e a ouvir coisas. Foi quando uma menina num vestido de chita floral lhe apareceu. Tinha o sorriso terno, quase divino, e a voz de rouxinol. Percebendo-lhe faminto, cofiou-lhe a barba grossa, e lhe ofereceu pedras, como se fora pão. Ele não quis. Daí, ela colocou-se às suas costas e acariciou as escápulas nuas: "Mas que belas asas você tem, seu moço... Ah, se eu tivesse asas assim, eu me colocaria entre as gaivotas, pularia por sobre as nuvens, eu quereria ser o Sol! Salte, Jesus, salte e voe!". Todavia, vendo a apatia daquele homem entregue ao mais fugaz pensamento, ela se enfureceu. Diante de seus olhos, por final, se tornou mulher, linda, a pele branca a escorrer mel, e se fez nua e pronta a entrega ardente da sua paixão. Mas, de repente, uma revoada de trinta-réis preto e branco partiu para cima da mulher, atacando-a. Ela se pôs a gritar com língua de fogo, estrebuchando-se contra o ataque violento das centenas de aves que, violentas, trinchavam-lhe o corpo. Então, com os pedacinhos de sua carne inda quente no bico, uma a uma pousavam nos lábios de Jesus, alimentando-o. Depois, unidas, carregaram o corpo magro e alquebrado do rapaz, cruzando o encarnado céu quando o sol ajoelhava-se no horizonte , em direção a vila da Praia do Forte.

A Iniciação
A imagem daquele homem carregado por um bando de aves entre nuvens do céu assombrou o grupo de onze pescadores pobres que se encontravam na praia da aldeia da vila. As aves largaram o rapaz no dorso da onda, a sétima, depois da passagem do vento que escancarava as vistas curiosas.
Os pescadores, percebendo que aquele mortiço desconhecido poderia se afogar, partiram ao seu encontro. Sem saber o que fazer, levaram-no aonde sempre se levavam as pessoas doentes daquela aldeota: para a choça de d. Mãinha Purah.
Ela, idosa, quase cega, pequena e artrítica, mas com dons de predição, o recebeu sem espanto. Disse para deitá-lo numa tipoia no fundo do corredor escuro onde, durante duas semanas, o trataria com rezas, limparia as suas feridas e o alimentaria com legumes, caldos  e raízes.
Jesus melhorava a cada dia e, por todos eles, proseava longamente com a velha num telheiro ao lado de sua hortinha, no qual o ensinava a fazer meizinhas, xaropes e outras beberagens caseiras. Também aprendeu a fazer pão e acompanhava a mãinha nas visitas regulares aos doentes e idosos daquela aldeia. Foi quando Jesus tomou conhecimento da miséria daquele povo, sem saneamento básico, sem escola e assistência médica. Acompanhava e consolava as famílias quando da perda de seus anjinhos. Ouvia os reclamos sobre a exploração de atravessadores e comerciantes da vila ou da capital, que tomavam a preço de nada a sua pesca e a produção suada de rendas e redes. Revoltava-se com o abandono da comunidade e a encorajava a resistir, reconhecer e brigar pelos seus direitos. A sua resposta, quase na totalidade, era o silêncio cabal da impotência.
Tomado de angústia e conflitos, quando não cumpria as "visitas de necessidade" com a d. Purah, passava o dia na praia. Sentava-se numa duna branca, onde os pássaros cercavam-lhe na cata de pequenos insetos entre os arbustos, verbena rosas e madressilvas, e emprestava os ouvidos, sempre mais a escutar do que a falar. As gentes o procuravam por curiosidade ou mesmo para lhe contar de seus problemas; outras pediam receitas de lambedor; outras queriam saber se viera mesmo do céu e se de lá podia-se ver anjos; e toda uma sorte de coisas sobre o Céu e a Terra e a mais vã filosofia. O moço era paciente. Com uma latinha velha e uns tocos de carvão torrava tatuís, que catava na arrebentação e comia ali mesmo. Muitas vezes, quedava-se atento assistindo a brincadeiras de meninos com espinhas de peixe ou banhando as tartarugas marinhas trazidas na ressaca de noite furiosa. Chamava as crianças, catava-lhe os piolhos e desenhava círculos na areia, cantarolando: "Que me perdoem se eu insisto neste tema/mas não sei fazer poema ou canção/ que fale de outra coisa que não seja o amor./ Se o quadradismo dos meus versos/ vai de encontro aos intelectos/ que não usam o coração como expressão."(1)
Ao final das tardes, já não estranhavam os pescadores quando ele, finalmente, se levantava e, batendo a areia da calça de algodão cru, se dirigia ao mar. Colhia nos lábios o sal, molhava de brumas os cabelos e, depois de torcer o seu dred, abria os braços a sentir a grandeza do mar na palma das mãos. O sol brilhava alaranjando o seu rosto e o vento, após serpear cada peça de suas vestes, se abrigava numa concha amarrada na cintura, reverberando em voz de canção, enquanto uma nuvem brilhante de cintilantes gotículas azuis arrodeava o seu corpo. Jesus então, numa fala diferente, passava a pregar aos peixes:
"O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e o s pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!"(2)

A Chegada a Vila da Praia do Forte
Foi num domingo que chegou, com seus amigos pescadores, pela primeira vez, à praça grande da vila da Praia do Forte. Os moradores assuntavam por entreouvidos. Sabiam pela massa daquele rapaz misterioso que fazia coisas estranhas, que falava de outros mundos, a cuidar dos desassistidos. Para alguns, um lenda; para outros, um postulante político.
Jesus ganhava no sorriso cor de búzio. Encostava-se próximo às ruínas do castelo Garcia D'Ávila e reunia pessoas a contar histórias de "Era uma vez um Reino... um outro de outro mundo, muito, muito distante..."
Assim, noutras noites, passaram a perguntar pelo contador de histórias, o novo rei daquele castelo em ruínas, a exigir-lhe a presença nas noites claras de luar. E foi numa dessas noites que conheceu a jovem Madá Magdala, uma conhecida periguete filha da região, que, não fosse a intervenção de Jesus, seria violentada por um grupo de jovens baderneiros num samba. Magdala agradeceu e sumiu com a noite, assim como com a estrelas, mas não sem antes de a primeira vez confessar um seu amor.
Quando o forasteiro se pôs a emitir opiniões sobre assuntos da vila, incomodou, afinal, ninguém, é bem verdade, sabia de onde e a que vinha. Aquela história de "cair do céu carregado por pássaros", claro, seria mais uma história de pescador, uma lorota, fruto da invenção dos desocupados e ignorantes. Daí a pouco, ele quase não saía mais da vila, tornando-se um tipo popular, quase folclórico, alvo até da especulação turística.
Era de aparecer em festas, nas quais não era convidado, a distribuir garrafas de vinho; da mesma forma, comparecia a velórios e funerais onde agarrava-se aos mortos, convidando-os a passear — num desses, estava presente o Jorge Amado —; ficava horas na praça, contando histórias para as crianças, outras para as mocinhas românticas, outras para os velhos; não perdia uma reunião da comunidade, onde insurgia-se contra as iniquidades, falando em nome dos desvalidos, prostitutas, travestis, quilombolas, índios, crianças, cães e gatos. Para ele, não poderia haver a felicidade onde reinasse a miséria, a injustiça ou desigualdade. Essa vergonhosa felici dade, cria, era puro egoísmo e hipocrisia.

Judas Queriote
O mistério acerca daquele moço, chamou a atenção de Judas Queriote, um jornalista malsucedido, desesperançado com o ofício e que, desde sua demissão, carregava dívidas de toda a natureza. Viu na história de Jesus a sua remissão.  Então, aproximou-se, logo tornando-se amigos. Conversavam por horas, inibindo os ingênuos e iletrados pescadores da aldeia, ora roxos de ciúmes. O jornalista, admirador febril do peregrino, tomava nota de seus pensamentos, reivindicações e insistia em colher dele alguma tendência política e/ou doutrinária. Mas, embora à primeira vista revolucionário, Jesus nada queria saber de política, de suas estratégias ou de conceitos ideológicos. Não discut ia sobre organização social e política, muito menos a financeira. Nada exigia ou esperava do Estado, nada queria com o poder, não reconhecia sequer o mérito de qualquer nome dentre os eleitos... Para ele, bastava que as pessoas fossem felizes. Elas mereciam isso, simplesmente, por estarem vivas. Certa mesmo era a sua indignação com o sofrimento alheio, com a exploração, a opressão, a violência e a maldade. Não precisava de muito, mas do suficiente. Irritava-se, entretanto, com os poderosos. E ali, com muito pouco, citaria nomes, falaria da exploração do povo e da corrupção do prefeito, dos vereadores, da omissão da Igreja, do padre, dos pastores — "sepulcros caiados" —, do juiz, do dono do cartório, do delegado.
Após exaustivas entrevistas, Judas trancou-se na pousada a redigir o seu aguardado artigo. Poderia ter revisado, mostrado a outras pessoas, pedido opinião, mas não, na sua estúpida segurança, tinha toda a certeza do mundo! Já via seu nome indicado aos grandes prêmios da imprensa brasileira, ou quiçá, mundial. Assim, tomou o primeiro ônibus a Salvador. Apresentou-se ao antigo editor, sendo parabenizado e empregado novamente. O artigo saiu no domingo, publicado em destaque, e o jornal vendeu a barulho, atraindo a atenção da mídia televisiva e radiofônica, além das redes sociais. Todos haviam de querer entrevistar o "Rei-Pescador", cotado, de já, para participação em comerciais de produtos de apelos populares de uma carangueja TV baiana.

O Juízo Final
Ora, as autoridades da vila, obviamente, não gostaram da citação de seus nomes na imprensa. A chegada das emissoras de rádio e televisão, e das revistas internacionais, apesar de aquecer o comércio, os colocava na lama, evidenciando  alguns costumes políticos não muito condizentes com a boa moral. O presidente da Câmara de Vereadores reuniu-se com o prefeito, o padre e o pastor. Criaram um discurso consensual onde acusavam Jesus de ser herege, louco, vagabundo. À noite, reunião fechada na delegacia, a deixa: "Aproveitassem o temperamento intempestivo do rapaz e criassem a situação. Ele tinha de ser preso, desmoralizado, desacreditado. E logo!"
Era noite de Natal. Estava o contador de histórias e os amigos pescadores, como de hábito, comendo azeitonas pretas e passeando por entre os arcos das ruínas do castelo, quando, do nada, uma adolescente desconhecida aproximou-se de Jesus e deu-lhe um beijo na boca. Um grupo de policiais e outros estranhos imediatamente saltaram em cima daquele triste "rei", agarrando-o num descarado flagrante: "Pedófilo! Pedófilo!"
Nem adiantou a resistência dos amigos, o rapaz foi arrastado sob a surra de rebenques até a delegacia, fato assistido com assombro e curiosidade pelos turistas e moradores da vila, sob a luz frenética de pisca-piscas. A capangada distribuía a zoada em notícias: "Abusou de uma criança, o vagabundo!" Ouvia-se da turba: "Que horror", "Pobre menina", "Monstro!", "Tarado!", "Esfola ele!"
Chegando à pequena delegacia, havia apenas uma cela. Nela, um bêbado, o Barrabás, solto para que não houvesse testemunhas para a "lição" de covardia que ali, logo, logo, teria lugar pela mão desmedida dos samangos.
Nuvens negras tomaram o céu, os penduricalhos natalinos sequestrados por um vento rodamoinho se espalhavam pelas pedras toscas. As areias polvilhadas feriam as pernas nuas e cegavam os passantes iluminados apenas por relampejos de uma chuva não concebida. Os morcegos e as corujas corriam feitos loucos para a luz e, dizem, todo o leite azedou.

As Sete Dores de Nazaré
Nazaré, por meio do noticiário televisivo, soube finalmente do paradeiro e da prisão do filho. Temendo por ele, ousou fazer o que sempre se negara: procurar o pai de Jesus.
Adonai, engenheiro que iniciara o ofício na construção de um açude no sítio em que Nazaré trabalhara, era agora um empresário bem-sucedido no ramo da construção civil. Quando soube que aquela mulher de seu passado de aventura estava à porta da firma, suou frio. Mesmo assim, por, talvez, uma curiosidade mórbida, aceitou recebê-la. O encontro marcado por ligeiro aperto de mãos foi de um constrangimento sem tamanho. A mulher nem sentar-se, nem água ou chazinho. Contou direto da sua história e pediu-lhe apoio. Rogou-lhe: "Ele é a sua imagem e semelhança... Não o abandone!"
Adonai foi só silêncio. Tentou abotoar o paletó apertado na barriga. Encaminhou-se ao lavabo, lavou as mãos, enxugou com a toalha o suor da testa e soltou o verbo: "Nazie, me perdoe, mas é o destino dele. De certa forma, convenhamos, foi ele quem o escolheu. Foi ele!"
Nazaré soluçou. Parecia-lhe então que nada havia a fazer a não ser chorar sozinha a dor de seu menino. Adonai, por desencargo de consciência, mandou Gabriel, o seu secretário de confiança, levar a mulher ao encontro do filho DELA. Ao chegar, sem forças, cansada e faminta, encontrou o tumulto formado: "Jesus é morto! Tentou reagir à prisão. Havia um punhal, não teve outro jeito. Fora apenas por defesa própria!", era o que dizia a boca coletiva de uma multidão confusa. Ao contrário dos empresários e de alguns comerciantes que comemoraram o castigo benfeito daquele pervertido, o  poviléu não arredava o pé da porta da delegacia. Acusavam a covardia. Xingavam a escória que mandav a e desmandava na cidade. Nas portas cerradas das igrejas, os punhos só encontraram silêncios. A mãe, desafortunada, só queria saber dele: "Cadê o meu garoto, por favor, cadê o meu menino!" Mas ninguém sabia de nada: o corpo de Jesus sumira misteriosamente!
Caifás, o subdelegado, acusava: "Foram esses vagabundos, os amigos do elemento. Foram eles. Têm hábito de sair por aí levantando defunto. Foram eles que sumiram com o corpo."  De outro lado, Pedro Simão, um dos pescadores, negava três vezes, enquanto amanhecia e o galo cantava. Tomé, acenando um retalho ensanguentado em forma de cruz e a crer apenas no que seus olhos viam, acusava a delegacia de tentar omitir as provas do crime, na tentativa de eliminar a possibilidade de exame de corpo de delito. O padre e o pastor surgiriam apenas na manhã seguinte, oferecendo o apoio e o consolo a ambos os lados, numa resignação silenciosa, contagiosa e conveniente.

A Discípula do Rei
Ao repicar dos sinos de uma fria e incompreensível manhã, Nazaré, sozinha, assistia ao apagar de luzes dos lampiões da praça quando Madá lhe apareceu: "E a senhora é de verdade a mãe do rei?" Nazaré não entendeu, mas, fragilizada, deixou-se levar pela mocinha a contar-lhe as histórias de um reino muito, muito distante, enquanto a radiodifusora disseminava no ar uma canção-lamento: "Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento?/ Só queria lembrar o tormento/Que fez o meu filho suspirar/ (...) Quem é essa mulher/ Que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo/ E deixar seu corpo descansar."(3)

Conclusão Inconclusa
Passaram dias. Os pescadores, em nome do amigo, se reuniam nos coqueirais da aldeia. Todos da comunidade manifestavam, conforme seu credo, a dor da partida tão prematura e da saudade do jovem Jesus: os cristão católicos, os evangélicos, os neopentecostais, os espiritistas e umbandistas. D. Mãinha Purah também sumira, sem levar de casa coisa alguma, deixando-a em portas abertas e, no telheiro, um ramalhete de rosas vermelhas imperecíveis.
Judas, de Salvador, enviou para os pescadores, num envelope, todo o dinheiro que ganhara com o artigo publicado e entrevistas concedidas sobre o anônimo Jesus: "Como poderia saber que isso aconteceria? Acreditava mesmo na força da figura dele perante a opinião pública. Acreditava que o povo apoiaria o meu amigo. Acreditava que poderia conseguir mesmo ajudar a vila pobre da região. Que trágico engano! Sinto muito."
E daí, numa noite estrelada onde os marulhos aqueciam os ouvidos, os pescadores estavam em uma choça com a porta completamente cerrada e, mesmo assim, alguém entrou. "Quem é você? A que vem?", perguntaram. Ele chegou mais perto, preencheu a escuridão de seu sorriso, e mostrou-lhes no corpo as feridas. Da testa seca, entretanto, desaguava um suor que, em terra, convertia-se em gotas de sangue. Os rapazes quedaram-se mudos de pensamentos e palavras, não lhe reconhecendo nem o rosto, nem a voz. Quem era aquele? Até hoje não se sabe.

(1) "Você abusou", de Antonio Carlos e Jocafi
(2) "Sermão de Santo Antônio (aos peixes)", de Padre Antônio Vieira (1654)
(3) "Angélica", de Chico Buarque


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