Quando o Amor é de Graça VI: a Mãe Zena
Raymundo Netto para Vida & Arte de O POVO
Mãe só se tem uma. Esta minha, para piorar, é uma idealista. A dona Zenaide estudava no Liceu ao tempo em que também cursava o Normal. Professorinha, recebia a troco denadica, em própria casa, os pequenos aprendizes “mal das pernas”, sem descuidar-se de ajudar sua mãe na criação dos irmãos — eram nove —, de fazer quitutes para venda no bar do pai e de estudar madrugada afora. Assim, ingressou na Faculdade de Odontologia. Aluna exemplar, honesta até dizer chega — não mente nem a pau — e toda pela Fé: se acredita, seja no que for, não tem quem a segure!
Boa parte de vida, Zena dividiu o consultório dentário com a casa de seis filhos barulhentos. Entrávamos e saíamos dele — à noite, brincávamos na cadeira da dentista a subir e a descer no “pedalo” — com dúvidas escolares e/ou domésticas, arengas ou mesmo para auxílio dos deveres de casa, ao pé da parede. Muitas vezes, éramos chamados para segurar os queixos dos pacientes no incisivo (ou molar?) momento do vaivém da extração.
De nunca reclamar da vida e de sempre dizer a toda hora e a todo o momento “Agradeça! Agradeça!”, desconfiava-lhe de algum temor ou tristeza quando ela, do nada, passava a cantar em voz de cantora de rádio: “Eu vivo a vida cantando, ai lili, ai lili, ai lou/ Por isso sempre contente estou, o que passou, passou.../O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou/ cantando a canção tão feliz que diz ai lili, ai lili, ai lou/ Por isso é que sempre contente estou... Ai lili, ai lili, ai lou”
Lembro-me dela amolegando uns “capitães” no almoço dos seis filhos, ou sentada conosco no meio da estrada — viajávamos muito —, em garagens tisnadas de graxa e cheirando a gasolina, distribuindo galinha assada guardada em potes de alumínio, fazendo sanduíches de carne de lata, comprando fazenda para a costureira tecer nossas roupas de festa, ou fazendo das contas para conseguir pagar a prestação da casa.
Conselheira do povo, era sempre procurada diante das confusões de vida alheia. Tinha ouvidos para todos, além de palavras acalentadoras acolchoadas do amor a pesar no peito. Pudesse, colocava de um mundo dentro de casa.
Entretanto, à mesa da cozinha, sede de minhas melhores memórias, ao puxarmos assuntos banais, levantava-se sem ter nem para quê. Dizíamos: “Mãe, eu nem terminei...”. Ela respondia “Essa conversa não vai levar a nada. Tenho o que fazer”. Sempre teve, até hoje. Não para nunca a nossa baixinha.
Uma noite, coitada, para que eu não fosse punido no dia seguinte por não ter cortado o meu cabelo — estudava no Colégio Militar — decidiu ela fazê-lo. Errou o corte. Fez um “buraco” que, rapidinho — e rindo muito —, preencheu tascando-me à cabeça, com cola branca, o cabelo caído na pia. E não é que deu certo? Milagre de mãe?
Dia, uma senhora lhe disse perceber-nos, os filhos, carentes — não havíamos assinado a “procuração” —, pois ela não era de nos carimbar de beijos. Ficou grilada. Falou sobre com os filhos. Nem ela nem o pai eram dados a manifestações de amor, como beijos ou abraços. Não sabia. Faziam outros tantos absurdos por nós, mas não beijavam.
Já casado, com filhas, uma tarde, sol pegando fogo, a vi chegar à calçada. Estranhei: meus pais não são de visitas. Nem entrou. Nas mãos, um saquinho com farofa feito de casa, encimado por papelzinho “Netto”, escrito com letra cursiva, da mais linda que já vi. “Preparei a SUA farofa e trouxe, pois não sei quando você vai em casa, né?”. E se foi, "Felicidades", no passo ligeiro de passarinho — pernas pequenas, voos inimagináveis —, tinha muita coisa para fazer. Sempre tem. Ai lili, ai liliiii, ai lou.
Para assistir a um emocionante vídeo, em 1984, de um show, cuja roteirista era Maria Carmen Barbosa, filha de Haroldo Barbosa, autor da versão da canção germânica “Lili (Hi Lili, Hi Lo)”, e em que a cantora Gal Costa, com ajuda da plateia, a canta, acesse: http://www.vagalume.com.br/trem-da-alegria/lili-hi-lili-hi-lo.html
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