segunda-feira, 3 de outubro de 2011


                                        Show para inglês ver

Bernivaldo Carneiro

Não fossem as rugas faciais esculpidas pelos severos anos, nem as têmporas pinceladas pelas agruras da vida e outras erosões da idade, ele poderia perfeitamente ser confundido com uma criança. Mirrada era a sua compleição física. Falo de um dos meus três ajudantes daquela obra, conseguidos após uma cata quase inglória pela redondeza.
Por índole, atento a tudo à minha volta, fui naturalmente convidado a lhe dedicar especial atenção e logo vi que o era o tipo da pessoa que tinha tudo para carregar — vinte e quatro horas por dia — a cara dos de mal com o mundo. Pois, afora outros revezes da “Vida Severina” que levava desde o nascimento, Angélico Baltazar (esse é o nome da figura) trabalhava pesado de sol a sol em troca de alguns trocados. E para não faltar muito mês no fim do baixo salário, entregava-se noite dentro aos bicos.
Enfim, um acanhado biótipo que cedo lhe rendeu o sinistro apelido de Azarzim. Um epíteto de maus augúrios que na véspera de completar 20 janeiros rendeu-lhe um olho vazado. Ossos do ofício. Resultado de uma pernada desferida por um irascível indivíduo de nome Crocodilo, que cantando literalmente de galo, recusara-se abraçar o ofício da dança. E olhe que a parceira não era qualquer uma. Era nada mais nada menos que Sheilla Perez. Alguém de espécie aparentada à sua e ainda por cima, considerada no meio dos empenados, como a rainha do Axé music.
Mas a despeito de tudo isso Azarzim era só alegria. Contava piada e fazia macaquices, narrava seus causos e ria. Ria muito inobstante a janela deixada pelos rebeldes caninos e a ausência dos bandoleiros incisivos não fosse favorável a tal estado d’alma. Em síntese: um hilário por natureza, um irreverente nato, um pândego de berço. Uma pessoa ajustada a amaciar os percalços da própria vida e pautado a curar as melancolias e angústias alheias. Alguém que, sem muito esforço, arrancava gargalhadas e aplausos dos mais circunspectos e compenetrados. E para mim que, modéstia à parte, trago em gérmen os vernizes do bom-humor a ponto de, a um só tempo, celebrar o santo e o libertino; logo me afeiçoei a Azarzim. Também sem demora Azarzim me tomou por confidente. Daí até eu interpretar com maestria a partitura de sua vida foi um pulo.
Era o coitado um rabisco só de insucesso sobre insucesso. Nem uma das seis mulheres com as quais dividira o teto (por aqueles dias padecia à falta de uma) tivera cerimônia em presenteá-lo com uma frondosa galhada. E afora um sem-número de outros contratempos, também não dera sorte nas urnas. Resultara fragoroso desprestígio eleitoral, sua busca de assento na Câmara de Vereadores de Aracati. Assim como, mais por carência de predicativos anatômicos do que por falta de talento cênico para adotar a sétima arte como ofício; seu currículo acumulava outro sonoro não. Fora reprovado como candidato a figurante em “Bela Donna”: película ambientada ali mesmo na terra natal de Adolfo Caminha (que também era a sua) e que teve como protagonista nossa também conterrânea Florinda Bolkan.
Mas Azarzim me segredou isso e muito mais sem mágoa e sem rancor. Pelo contrário: de forma bem-humorada e gozando a si. E nesse aspecto ele era feliz. Poucos são capazes de se divertir com o próprio insucesso, de fazer gozação com seus penares. Azarzim fazia com sobra.
Pois bem, obediente ao preestabelecido, a cada novo resultado eu ia ao telefone e repassava as informações ao prefeito. Ele agendava uma visita à obra que nunca acontecia. Cansado das promessas sopradas para outras bandas pelos viciados ventos da velha política, resolvi produzir uma gozação. Orientei a equipe para cercar o terceiro poço com tiras plásticas retiradas das embalagens dos produtos químicos ali empregados e, com a máquina fotográfica no ombro e já empunhando a câmera de vídeo, acionei a eletro-bomba de teste, entreguei uma tesoura a Angélico Baltazar e pedi-lhe que inaugurasse a obra. Sem perturbação e antes de tudo desenvolto, Azarzim pousou os pés descalços na proteção sanitária por ele construída com competência e esmero, cortou a improvisada fita e proferiu discurso. Os gestos cênicos e a demagógica retórica em nada deviam ao mais bizarro e hipócrita dos políticos. E tudo isso sob o olhar — a um só tempo — inquisitivo e admirado do Prefeito, que ali aportara de mansinho ainda no início da simulada solenidade. 
Mas do trabalho à diversão, que ninguém é de ferro... Desde o primeiro dia hospedado às barbas de Canoa, na noite da sexta-feira (véspera da conclusão dos trabalhos) concedi-me o direito de olfatar os ares de nossa Broadway. Os quais, de tão descolados, não sei se os diria: latinos, americanos, europeus, asiáticos... Na verdade uma mescla dos odores do mundo. De fato Canoa Quebrada respirava as glórias da frequência. E como tudo ali é mais ou menos fruto do acaso, era um fervilhar de gringo indo, brasileiro vindo e vice-versa. Uma harmonia ditada naturalmente pela mais absoluta falta de organização. Sem ter onde sentar, também me pus a esmo. E em uma de minhas idas e vindas cruzei com Azarzim. Atento ao trabalho do momento, ele não me viu. Seguiu com a boca mergulhada no megafone: “Senhoras e senhores não percam às 22 horas de hoje na praça da Broadway o maior espetáculo da terra. Venham se deliciar e aplaudir Sheilla Perez, a perua que dança. Ladies and gentlemen, don’t lose at 22 pm today in the square of Broadway the greatest show on earth... Señoras y señores, no se pierde a 22 horas de hoy en la praza de Broadway, el mayor …Mesdames et messieurs, ne perdez pas à 22 heures aujourd'hui, dans la carrés... Signore e signori, non si perde in 22 pm... Meine Damen und Herren, nicht bei 22 Uhr ...列席の皆様、ブロードウェイの通りで、今日22時で...”..
É do meu feitio ser pontual: pisei a praça minutos antes da hora anunciada. Precaução essa que em nada me poupou as dificuldades que tive para abrir espaço entre a estrangeirada, até dar com os pés aos pés do palco. Palco?! Não! Digo melhor se eu disser ringue.
No centro, ao som de “Na boca da garrafa”, saído de caixas asmáticas, o belo exemplar de galipavo meleagris já marcava passo. Vestiam-na: um minúsculo short e uma também diminuta blusa igualmente diáfana. Sobre a cabeça, uma peruca loira...
Quando Sheilla Perez tinha o pé direito apoiado, o esquerdo estava no ar; quando apoiava este, erguia aquele; se lhe falseavam os dois, o rabo tocava a plataforma. E era exatamente nesses momentos, antes de reagir com os aromas de outras fumaças do ambiente, que o esquisito odor denunciava a farsa. Neste ritmo a “Estrela” ainda dançava a primeira música quando...
Bem, como o show era de fato para inglês ver, o primeiro a se manifestar foi um britânico: Ohhhh!... A partir daí não faltou aplauso. Bravo!, bravíssimo!, bravô!, Caramba!, Mama mia!... Por esse tempo, sem perceber o megafone ligado e ao alcance de sua voz, Azarzim gritou para a Assistente de palco: “Baixe a chama do fogareiro que chapa tá sapecando os pés e chamuscando o rabo da perua!”. Foi aí que um peruano de maus bofes (eu soube depois que extensa era a folha de intransigências daquele “Eco-chato” tempo integral em defesa dos animais), abriu caminho entre a multidão. Minutos depois, antes mesmo de ser deitada a primeira moeda na cuia que fazia o papel de caixa de bilheteria do espetáculo, aquela personificação de São Francisco de Assis, ladeado por três policiais, aportou diante de Azarzim. Súbdito e sem maiores formalidades ele exibiu a credencial do Greenpeace e, com um par de algemas, decretou o fim do show
Se para o bom entendedor, meia palavra basta é suficiente dizer que meu funcionário sob a luz do sol e empresário da artista de alta plumagem Sheilla Perez na ausência do Astro Rei; não se fez de desentendido diante do convite nada solene. Debaixo de empurrões e cutucões de cassetete nas costas e costelas, ele abriu trilha em meio à plateia (antes calorosamente receptiva, ora dividida entre apupos e ovações), a caminho do inafiançável xilindró.

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