sexta-feira, 30 de setembro de 2011


                                              Devoção

Para Deise Teixeira

             Longos catorze meses, aqueles. Tempo fechado, de luto. Brecha, só aos domingos e na esperança de algum alento milagroso que não poderia vir (sabia) da homilia insossa daquele vigário.

            Os filhos, crescidos, visitavam-na quinzenalmente. Insistiam que deixasse a fazenda pra trás. Vendesse, viesse morar com eles na cidade. Alugariam um bom local. Longe daquele ermo o burburinho da rua poderia renovar-lhe as forças, pensavam. Mal sabiam que na roça a vida pulsava no viço dos campos, no escramuçar dos currais, na cantoria dos bichos noturnos... Ficariam mais tranquilos com a proximidade da mãe e esta, distante da onipresença de alguém que já passara do tempo de continuar importunando os vivos. Nenhum apelo demovia as intenções de Dona Inês, muito menos a ideia de se afastar do lugar onde fora feliz por quase uma trintena de anos.

Os dias transcorriam em melancolias que vinham e suspiros que iam...  Iam em soluços miúdos, mansos, quase sensuais de tão contidos.  Aparentemente monologava com o Alto e mesmo no espesso silêncio da escuridão, nada se ouvia além de sussurros.  Quantas vezes adentrou pela noite salgando as lindas maçãs do rosto em lágrimas caudalosas. Felinto adorava as proeminências de sua face camponesa. O simples toque da pele com os pêlos da mão excitava-o.  Saudades, ai,ai.   Por vezes somente o uso hábil dos dedos apascentava o agito dos desejos. Vãs tentativas de esquecerem seu homem. Achava estranha aquela história do padre sobre a precariedade das coisas, que tudo chegava ao seu termo. “Céus e terras passarão...” O seu amor por Felinto? Não. Jamais passaria.

Chegara por fim a decisão – por todos julgada insana – de encomendar uma estátua do amado em tamanho natural, toda feita em pura madeira-de-lei.  

Duas vezes ao dia trancava-se no quarto. Pouco antes do aroma do almoço invadir os cômodos, fechava tudo: A porta e os olhos do mundo também conhecidos por janelas. Entre quatro paredes, ela, Felinto e um silêncio sepulcral. Filomena bem que tentava auscultar algum som por trás da taipa batida. Um suspiro, um desfalecimento, uma coisinha que denunciasse o juízo de sua patroa.  Ao cabo de sessenta minutos desenfurnava-se para retomar a vida até que, extinto o efeito do remédio, retornasse ao quarto invariavelmente na boca da noite. E passaram-se quase quatro meses nessa novidade até aquele final de manhã de uma segunda-feira de outubro.

As palmadas fortes, vindas da soleira do alpendre, tomaram-na de sobressalto. Alguém atrás de serviço, com certeza. Resmungou. Filomena foi ver. Dispensasse. Não necessitava de mais ninguém naquele canto.

Encontrava-se na sala quando o homem entrou... A empregada à sua frente. Revelou-se quando a gorda Filó saiu-lhe do meio. Mais parecia um colosso.  Uma onda de tremor varreu-lhe as fibras todas, faltou-lhe o ar, só não cambaleou por estar sentada. A lembrança de Felinto, tão enraizada em seu cotidiano, parecia dissolver-se feito orvalho ao contato do calor.

Rigoberto era o nome que, cortesmente, se apresentava como criado. Carregava a tiracolo uma sacola enorme e desejava tão somente mostrar-lhe algumas novidades em utilidade doméstica. Enquanto sacava da bolsa uma variedade infinita de apetrechos, mal percebia os olhos de Dona Inês que a essa altura passeavam pela sua estampa. As mãos possantes seguravam as peças com delicadeza. Os braços morenos ora apoiavam os vigorosos cotovelos nas coxas firmes, ora desenhavam no espaço o manejo preciso dos instrumentos. O tórax, jovem, aproximava-se e afastava-se para mostrar a intimidade das peças. Aquele vai-e-vem causava-lhe frêmitos. Ficou em silêncio praticamente o tempo todo. Os olhos não a deixavam falar a não ser para balbuciar um “sei”... “útil”... “prático”... “hummmmm”... Por fim, terminado a exposição, Dona Inês insistiu na estadia de Rigoberto. Ficasse pelo menos para o almoço que sairia dali a pouco. Deu um jeito de apressar a criada (falsamente, é bem verdade). Para o almoço, sarapatel de bode. E o pirão? Ai, o pirão! O cheirinho tomava conta da sala. Por essas horas Felinto, o marido feito em pau, aguardava com a peculiar paciência das estátuas, o atraso de sua amada esposa. Dona Inês? Quede!

A perseguição perdurou por todo o almoço. O mascate, esgotado o elan da conquista comercial, já percebia o que se passava. A fazendeira insistia com olhares cada vez mais lascivos. A fala, inicialmente recatada (Se o senhor estava há muito nessa vida; de que lugar era o senhor; se pouso certo, possuía o senhor; se família havia, que o senhor fosse chefe...) ia, aos poucos, tomando-se de dengo.

Depois daquele bode, Rigoberto só queria tomar o rumo da estrada. As distâncias eram continentais e seu carro, machucado. Além do mais o efeito da refeição já lhe chumbava os olhos. Tinha a impressão que se dali não evadisse seria impiedosamente capturado. O cafezinho com licor de laranja não houve como negá-la, mesmo porque agora a viúva segurava-o pelo bíceps conduzindo-o quase em súplica para uma rede instalada num alpendre virado pro norte. Ordenando a feitura do café, notou de revés que a criada gesticulava à socapa. E eis a fatídica notícia: Em toda a casa não havia uma acha de lenha sequer, nem mesmo para borbulhar um pires d’água.

Enquanto espichava-se na rede, Rigoberto, em quase estado de dormência, testemunhava estrondoso e fenomenal esbregue.  Das profundezas da casa parecia ouvir a voz tonitruante da viúva. Não conseguia entender muito bem o motivo da descompostura; contudo, conseguiu definir claramente o desfecho da confusão: Pois lasque Felinto, sua égua!

Depois, silêncio.


Brennand de Sousa

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