A Fantástica literatura no Ceará
Organizar uma coletânea não é tarefa das mais fáceis, sobretudo quando não se pretende inserir textos aleatoriamente, sem critérios de catalogação, ou aferir valores num processo seletivo. Nesta empreitada, que visa tão somente reunir narrativas fantásticas escritas no Ceará, Pedro Salgueiro contou com mais dois nomes da nossa literatura para a efetivação da pesquisa histórica: Sânzio de Azevedo e Alves de Aquino (O Poeta de Meia-Tigela), o que resultou nesta obra, “O Cravo Roxo do Diabo”: o conto fantástico no Ceará, título tomado de empréstimo de um conto de Álvaro Martins. A ideia inicial era traçar apenas um panorama do conto, mas a pesquisa avultou-se e ficou decidido que, além dos 172 contos selecionados, seriam introduzidos dois apêndices, um com 17 capítulos de romances e outro com 60 poemas, compondo, assim, um panorama amplo do texto fantástico cearense produzido entre os séculos XIX e XXI.
O gênero fantástico se consolidou como estética a partir do Romantismo, com suas narrativas góticas, embora já tivesse suas raízes nas histórias de deuses, fadas e feiticeiras da Antiguidade Clássica. Como todo gênero, o Fantástico teve estabelecidos os seus cânones, continuamente fundamentados e revisados por teóricos como Roger Callois, Tzvetan Todorov, Irene Bessiérre, Louis Vax, Victor Bravo, Filipe Furtado, e, mais adiante, a filóloga argentina Ana María Barrenechea, entre outros. Mestres do Horror, como H.P. Lovercraft, E. T. A. Hoffman, Edgar Allan Poe e Teophile Gautier deixaram um legado para os amantes do sobrenatural e exerceram influências na ficção fantástica produzida em todo o mundo. No Brasil, as primeiras manifestações aparecem em contos de Álvares de Azevedo e, posteriormente, de Machado de Assis.
A sistematização dos cânones do Fantástico passou por muitas revisões. A mais tradicional, de Tzvetan Todorov, no livro Introdução à Literatura Fantástica, assevera que ele se alicerça por meio da hesitação do leitor em ‘aceitar’ ou não os fenômenos narrados, desde que tais fenômenos não predisponham uma leitura alegórica nem poética. O crítico estruturalista opõe, ainda, o que ele chama fantástico a outros dois conceitos fronteiriços: o estranho e o maravilhoso; o fantástico ocupa o tempo da incerteza, da vacilação entre aceitar ou não o evento extranatural; assim que se escolhe uma resposta ou outra, o fantástico é abandonado e entra-se no domínio de um dos gêneros vizinhos: o estranho ou o maravilhoso. Nessa acepção, nem todos os textos aqui coletados estariam inseridos no gênero.
Tomando, entretanto, a concepção mais atual, de Ana María Barrenechea, que afirma a configuração do fenômeno em forma de problemas feitos a-normais, a-naturais ou irreales em contraste com factos reais, normais ou naturais, considera-se fantástico todo texto cujo enredo encene acontecimentos que transponham as leis naturais, ou seja, que coloquem em conflito o mundo empírico e o mundo fantasioso.
Na primeira parte da coletânea, dedicada aos contos, constam 172 narrativas organizadas em ordem cronológica de nascimento dos seus autores, tal como ocorre nos dois Apêndices. Todos os textos, embora focalizem o extranatural por procedimentos estéticos diferentes, inserem-se no que se denomina, hoje, literatura fantástica, numa acepção ampla do gênero, tomando-o, pois, como narrativas de mistérios que confrontam o racional e o irracional.
No Ceará, o primeiro conto fantástico de que se tem registro foi escrito por Juvenal Galeno. “O Senhor das Caças” tem a mesma estrutura das narrativas de Álvares de Azevedo em Noite na Taverna: enquanto trabalham com a mandioca, num serão na farinhada, os sertanejos contam histórias de caiporas, aventuras de caçadas e encantamentos. São histórias dentro de uma história. Igual estrutura está no conto “Capitão Maciel, 3.ª companhia”, de Tomás Lopes, cujo enredo deixa claros seus desdobramentos: Depois do jantar, na salinha do café, falava-se em casos estranhos, mistérios do além-túmulo. Cada um contava a sua história, todos, porém, afetando descrença, ceticismo, explicando tudo pela coincidência, numa tentativa de racionalização que não impede o espanto quando se constata a aparição de um morto, motivo também presente em Cruz Filho (“A basílica”), cujo enredo comprova a presença da ex-escrava nas ruínas da igreja onde morreu. Florival Seraine, igualmente, em seu “Guajara”, coloca o insólito em contação de ‘causos’ numa venda.
O realismo cearense foi prodigioso no espírito inventivo das narrativas fantásticas do início do século XIX. Duas representações significativas estão nas narrativas de Pápi Jr. (“A Cruz-das-Malvas”) e Oliveira Paiva (“O ar do vento, Ave-Maria”). No enredo do primeiro, há uma atmosfera propícia para o sobrenatural, na descrição esmerada da escuridão da noite impenetrável e compacta, corria-nos pela frente como um largo pano sujo de fuligem, em que aparece, na estrada, em frente à cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa que lá foi enterrada. Na do segundo, tem-se a aparição de um monstro, no meio da noite, carregando a cabeça de uma mulher (fazendo, ainda, umas caretas horrorosas) para enterrar.
E vários motivos dão asas à criação do conto fantástico cearense, como as peripécias do capeta (“O dia aziago”, de Lopes Filho), aparição de almas penadas (“Alma penada”, de Américo Facó), espectros (“Espectro”, de Gustavo Barroso), visagens (“Julho é um mês que não tem fim”, de Batista de Lima). Histórias de pescador com aparição de sereias (“Sereias”, de Herman Lima) ou botijas (“Uma história fantástica”, de Martins d’Alvarez; “A botija”, de Genuino Sales e “A botija”, de Lustosa da Costa). Algumas vezes, não se configura nenhum fenômeno, tão somente a atmosfera de mistério estabelece a presença do extranatural ou seu prenúncio, como ocorre no conto “Casa mal-assombrada”, de Carlyle Martins (Numa visão macabra e sinistra, atestando a transitoriedade de uma vida de opulência e conforto, a velha casa, como que indiferente ao perpassar dos anos, ensombrada pelas mongubeiras sempre monótonas e sussurrantes, tinha as paredes carcomidas e cobertas de fendas. Por seu aspecto aterrador, atestava ela a glória do passado distante, obscurecido pelas brumas dos tempos e demonstrando como a felicidade humana é incerta e passageira...) e em “A Oiticica”, de Otávio Lobo (Se alguém, rompendo o escuro, passa debaixo de alguma oiticica, sente arrepios de medo, pavor de visagens e assombrações de almas do outro mundo).
São bastante prodigiosos os engenhos dos nossos contistas, seja a dar vida a uma bailarina de bronze, num delírio (“A bailarina”, de Pimentel Gomes); a configurar um milagre de um padre que salva, com sua atitude, um jovem médico da fúria de fanáticos religiosos (“O milagre”, de Fran Martins), seja a atribuir a concretização de um fato insólito à fé em Nossa Senhora, como o faz João Clímaco Bezerra (“História do mar”), ou a fazer sorrir um macabro boneco de Judas (“Judas”, de Edigar de Alencar).
Entre muitos dos textos modernos, permanecem os temas tradicionais, como a metamorfose e a morte: no conto “Pedra encantada”, de Rachel de Queiroz, A história é que toda véspera de Ano-Bom ao bater da meia-noite a pedra se desencanta. ...molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro. E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira da água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho. Já na narrativa “O 10 nos limites do Bené Gavião”, de Barros Pinho, O Bené pulou este batente e saiu daqui com uma cabeça de onça, o corpo de homem e asas de gavião encantado.
A morte toma forma humana em “Dizem que os cães veem coisas”, de Moreira Campos, que a personifica na figura de uma mulher, antiquíssima, atual e eterna, para levar a vida de uma criança que se afoga na piscina enquanto os pais se divertem numa festa. Do mesmo modo, no romance A Casa, de Natércia Campos, além da antropomorfização da casa, que é a narradora-testemunha de muitas histórias que se passaram sob o seu teto, a morte também assume a forma de uma pessoa que surge inusitadamente quando ocorre um suicídio por enforcamento em um dos quartos. No conto “O encontro recidivo”, de Giselda Medeiros, os mortos dançam e pensam; nos enredos criados em “A capa de chuva”, de Sânzio de Azevedo e em “As almas do rio perdido”, de Lucineide Souto), pode-se perfeitamente conversar com pessoas mortas; em “Terror”, de Glória Martins, bonecas adquirem vida, riem pavorosamente e cometem crimes.
No conto “O Homem de Neandertal”, de Rubens de Azevedo, não há fronteira entre o presente e o passado; o narrador tenta proteger um amigo arqueólogo de um atentado fatal, mas não consegue: [...] não sonho. Parece que penetro numa fenda do tempo e participo realmente daquela vida primitiva. O arqueólogo, mesmo trancado no quarto do amigo que o vigia pelo lado de fora, é assassinado, durante a noite, por um homem das cavernas que já foi seu objeto de estudo e já vinha, há muito, ameaçando tirar-lhe a vida. Já R. Batista Aragão instaura o sobrenatural na figura de uma alma penada que aparece na estrada para pedir ajuda aos incautos. Diz o narrador de “O assobiador do Folha Larga”: [...] sexta-feira, 13 de agosto e noite de lua cheia. Como reforço às possibilidades de encontro com os mistérios do além, havia e bastante comentado, o “Assobiador do Folha Larga” cuja figura era tida como infalível. /.../ Corcunda, rosto coberto, pernas alongadas e a imitar com perfeição as pernas de um alicate. Fez-me lembrar de relance a fealdade do Corcunda de Notre-Dame. Conduzia no dorso certo fardo volumoso, talvez pesado e sobretudo incômodo, uma vez que o soprar constante demonstrava cansaço. Aproximou-se ainda mais, do local onde eu me encontrava e deu o ar da costumeira e civilizada educação, tratava-se, na verdade, de um filho que há tempos assassinara o pai e ficara a vagar, carregando um peso nas costas, qual Sísifo castigado por Zeus.
No conto “Quadros em movimento”, de Lourdinha Leite Barbosa, “os personagens” dos quadros afixados na parede do apartamento da narradora libertam-se e saem, como em rebelião, cada um contando a sua história de aprisionamento nas telas; quando o leitor tende a racionalizar o acontecimento, atribuindo-o a um delírio da narradora que se confessa extremamente cansada, eis que ela desperta com a queda de um quadro e percebe que a tela está completamente branca, sem vestígio de tinta. Já no conto de Rosemberg Cariry, ocorre uma situação inversa: um homem adentra uma tela e, logo que se integra à paisagem, numa sensação de bem-estar, descobre a presença de um leão feroz. No enredo de “Escadaria”, de Mônica Silveira, a personagem entra no cenário de um desenho, depois retorna à realidade, como se o insólito fosse natural. No “O leopardo da galeria Pedro Jorge”, de Aldir Brasil Jr., o narrador inicia o conto declarando Escapou do Bom Jardim depois do sumiço da mãe e instalou-se para sempre nas paredes da cidade, feito colagem barata; após inusitadas situações, o personagem desaparece sem que saibamos se era realmente homem ou bicho. Em “A última obra”, de Isa Magalhães, é a leitora que entra na obra que está lendo, fundindo realidade e ficção.
A técnica da tentativa de racionalização do evento fantástico, de que falamos há pouco, própria do escritor consciente dos cânones do gênero, está também presente na narrativa “Tugúrio”, de Carlos Roberto Vazconcelos; quando o leitor pensa que tudo o que o personagem viveu foi apenas um pesadelo, o narrador o arrebata com a informação: O ambiente agora era úmido e fétido. Verificou as palmas das mãos com olhos abismados. Mal podia acreditar. Teve visões difusas do seu inferno. Mas ainda não era hora de purgar a alma. Só quando voltou a si definitivamente é que foi recordando... aos poucos... E compreendeu, com assombro, que o pesadelo estava apenas começando.
No universo fantástico, tudo é perfeitamente possível: unhas que surgem durante a noite (“Unhas”, de Ana Miranda); ondas que aparecem repentinamente e invadem a cidade (“A onda”, de Adriano Espínola); a moça que tem gatos dentro de si (“A menina que tinha gatos dentro de si”, de Carmélia Aragão); uma cidade estranha, dominada pelos dragões, que remete a uma alegoria (que não se concretiza) da impossibilidade de se viver nas metrópoles atualmente (“Os quatro dragões azuis”, de Dimas Carvalho); o jogo de dama ativo mesmo após anos da morte de seu dono, que o movimenta durante a noite, seguindo o ritual de quando estava vivo (“O Jogo de Damas”, de Pedro Salgueiro). No texto de Jorge Pieiro, “O bicado Oreblas”, o que ocorre no sonho do personagem se torna realidade quando ele acorda, como se o mundo onírico e o real tivessem feito um pacto.
O insondável mistério da morte permite muitas experiências estéticas e inspira a criação de universos que transcendem a razão. No irônico “Pequeno interlúdio para o desespero”, de Airton Monte, a personagem parece ter passado a vida a aprender a cozinhar para os seus familiares, pois, quando atinge o seu objetivo e os procura para se sentarem à mesa, todos viraram peças de pedra ou de cera; a descontinuidade do tempo permite que ela não o perceba. Em “Folhas caídas”, de Nilze Costa e Silva, a vida da personagem depende da vida da planta; quando o vegetal murcha, a moça sabe que é hora de partir. No conto de Silas Falcão, “O celular”, o protagonista, após retornar de um enterro, recebe a ligação da pessoa morta. Já em “O sobrevivente”, de Tércia Montenegro, são “as nuvens ruins do céu” o elemento desencadeador de uma maldição.
Acontecimentos inusitados se desdobram nos enredos, tornando possível o que parece absurdo. Nilto Maciel metamorfoseia um rosário na figura de um estranho homem: [...] o rosário não parava de se mover, arrastava-se pelo chão como um réptil, dando voltas ao redor da mesa e de nós. E só então compreendemos a verdadeira natureza das contas. Não, não se tratava de um rosário de contas, de um objeto, mas de um ser vivo. Raymundo Netto, no conto “Anúncio”, cria um personagem que, no decorrer dos fatos, inquieta-se com os olhares e as atenções que atrai; só no final revela-se o mistério: Foi ao banheiro, torceu para que a cunhada ali não estivesse, e encostou-se, porejado, à pia. Foi então que teve a conclusiva revelação: ante ao armário do banheiro, percebeu que, ao invés de sua costumeira face, havia um espelho!
Se os fantasmas ‘alvacentos e aterrorizantes’ eram os instauradores do insólito nos primeiros contos fantásticos, fazendo jus a uma era de crendices em visagens e espectros, no nosso tempo, o extranatural pode ser apenas a desagregação do real, e os motivos se atualizam para traduzir o medo de um novo tempo: uma planta, os pés inchados, um relógio, ou “humanóides planando sobre discos metálicos”. São muitos os contistas cearenses que enveredam pelo insólito; alguns de modo mais tradicional, instaurando um clima desagregador e o medo; outros naturalizam o extranatural, trazem-no para a rotina do personagem sem a instauração do pavor, embora colocando o leitor diante de fatos que fogem da lógica referencial.
Na segunda parte da coletânea, estão capítulos ilustrativos dos 17 romances fantásticos escritos por cearenses. O primeiro, A Casa Assombrada, de Bezerra de Menezes, como o próprio título prenuncia, traz a inserção do sobrenatural, a presença de barulhos estranhos e mesmo uma assombração corporificada, capaz de interagir com os vivos para horrorizá-los: De repente, foi a atenção de um e de outro atraída para a aparição de um terceiro, embuçado em um capote escocês, que se acocorou ao pé de Manoel e pôs sobre as brasas a sua espetada. Esta, em vez de ser de carne, era um sapo enorme, cuja gordura derretia-se e pingava nas brasas, que crepitavam sinistramente. Os dois olharam-se como quem dizia: temos obra. O intruso, mudo e impassível, virava o sapo, ora de barriga para cima, ora de costas, e, por fazer obséquio a quem lhe fornecera as brasas, levava-o acima da espetada vizinha para untá-la com a gordura que escorria do bicho. O Fantástico se realiza de forma tradicional, tanto pelo espaço, como pelo clima soturno que se estabelece, quanto pelo motivo que conduz o enredo.
Em O Reino de Kiato, segunda obra catalogada, de autoria de Rodolfo Teófilo, não há a presença de assombrações, mas tão somente de elementos que subvertem a normalidade, como a flor esquisita e curiosa, que Tinha corola de um sem número de pétalas azul ferrete, quase negro, como que brunidas, com reflexos metálicos, e no centro os órgãos de reprodução, alvos como arminho; engastava-se num pedúnculo curto, envolvida num ambiente delicado e sutil perfume bem como a uma crisálida, uma joia que resplendia aos raios do sol, vistas pelo dr. John King Paterson, ao chegar em Kiato, cidade que causava estranheza pela soberania de sua liberdade depois de mais de um século de reação contra os usos e costumes resultantes da intoxicação alcoólica e sifilítica. Já A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, retoma o diálogo com os mortos, visto em A Casa Assombrada, configurando um fenômeno que ultrapassa o estranhamento, a mera anormalidade, e instaura a presença do sobrenatural, tal como ocorre também em O Valete de Espadas, de Gerardo Mello Mourão, por meio das figuras do casarão e de Gamaliel que figuram ao narrador como aparições diabólicas, modificando, inclusive, a sua visão sobre a aparente normalidade de sua amada Jezebel.
A casa assombrada, ou o casarão, ou simplesmente a casa, são espaços e motivos de várias narrativas presentes nesta coletânea. Na obra de Natércia Campos, a casa é a personagem protagonista e a narradora de fatos que atravessam gerações. Em o Mundo de Flora, de Angela Gutiérrez, há um casarão onde se ouve a voz dos mortos; em Leão de Ouro, de Natalício Barroso, há até a observação: não há casa antiga que não tenha seu fantasma, já que os mortos arrastam chinelos, desarrumam coisas e acendem velas. Em Coração de Areia, de Marly Vasconcelos, também são os mortos os autores dos fenômenos, pois se manifestam e exercem influência na vida dos vivos através dos seus retratos. No enredo de Busca, romance de Teoberto Landim, igualmente há uma casa mal-assombrada, onde, durante a noite, estilhaçam-se garrafas no chão. Seja com um leitmotiv futurista, como disco-voador; inusitado, como cabeças de deuses que dão orientações para a vida; ou tradicional como a visão de almas, o ouvir de vozes, a petrificação de uma moça durante a missa ou o revoar de morcegos presos em gaiolas, aparição de serpentes ou abutres, transformando o clima de toda uma região, as narrativas se constroem por meio de fenômenos inexplicáveis pelas leis da razão.
Em Os Verdes Abutres da Colina, de José Alcides Pinto, loucura e maldição se fundem, criando um universo completamente surreal. A lógica dos fatos é subvertida pela presença de uma maldição em todo o Alto dos Angicos, região fundada pelo coronel Antônio José Nunes, o garanhão luso que naufragou naquelas terras e a povoou unindo-se a uma índia. Ele multiplica a população ao relacionar-se com várias mulheres ao mesmo tempo, inclusive com suas filhas; assim, seus netos são também seus filhos. Os verdes abutres anunciam o fim de tudo, transformam toda a atmosfera, mesmo com a crença do povo no poder do demônio preso numa garrafa.
Não necessariamente o evento instaurador do insólito percorrerá toda a obra romanesca; desde que encenado, em qualquer passagem, dará a ela a caracterização do gênero de que ora tratamos, o que não negará, se existente, a presença do estranho, do maravilhoso, do macabro ou do surreal.
Quanto aos poemas, os teóricos do gênero não citaram, em nenhum de seus estudos, peças para ilustrar características do Fantástico, tão somente mostraram a sua configuração em composições narrativas como o conto e o romance. A despeito dessa desconsideração pela presença do gênero em versos, um dos primeiros textos que incorporaram elementos como gigantes, deuses e intervenções sobrenaturais na literatura foi o “Poema de Gilgamesh”, composição suméria de 2000 a. C, a que se seguiram as epopeias Ilíada e Odisseia, de Homero, todos, como é natural do épico, versos narrativos com forte inserção do extranatural. Já na Idade Média, apareceu, na Índia, o Mahabharata, poema que narra acontecimentos históricos que têm, nitidamente, a intervenção do mitológico. Especificamente no Ceará, tais manifestações se deram, inicialmente, na poesia do patriarca Juvenal Galeno, do poeta Barbosa de Freitas, dos romancistas Bezerra de Menezes, Rodolfo Teófilo e Emília de Freitas, bem como em contos e poemas de Antônio Sales, percorrendo as correntes estéticas que se seguiram e se sobressaindo em gêneros textuais variados.
Tomando o Fantástico na acepção de fantasia ou encenação de evento transgressor da normalidade, o organizador decidiu incluir nesta seleção poemas em que transparecem imaginações delirantes ou evocam criaturas que subvertem fatos naturais, como bruxas, duendes, gnomos, feiticeiras, morcegos, sereias, satanás. Compreendendo-o, em sua concepção primeira, como instauradores do mal, os versos são abundantes em palavras como: treva, morte fúnebre, lúgubre, sombrio, tormento, fantasma, mistério, vulto, pântano, assombração, medo, maldição, alma, soturno, visagem, espectro, pavor, horror, presságio, todas pertencentes a um campo semântico muito semelhante. O ponto alto da compilação está nos poemas narrativos, dos quais se podem destacar Excertos de Brosogó, Militão e o Diabo, de Patativa do Assaré, em que Brosogó acende vela para o diabo e o encontra, na vida real, como seu defensor; em O vestido que verteu sangue, de Oswald Barroso, conta-se a história de Maria Sinhá, cujo vestido verteu sangue, como anuncia o título, Saiona, a mulher dos olhos de fogo, de Rouxinol do Rinaré, cujo título já anuncia a desordem do real.
Seja no conto, seja no romance ou nos versos, os fenômenos sobrenaturais e o insólito são fontes de inspiração perene para os escritores cearenses. A desagregação da lógica, a subversão do que chamamos de normalidade, se dá, sobretudo, pelo insondável mistério da morte, que predispõe a inquietação e a inventividade dos que sondam seu enigma. A metamorfose, a aparição dos mortos, a presença de seres sobrenaturais ou providos de poderes inusitados colocam o leitor diante de um universo em que absolutamente tudo é possível. Com essa amostra, tão bem selecionada pelo organizador da coletânea, vê-se que o gênero fantástico permanece, embora com seus cânones revisados, e que a produção da nossa literatura está em constante busca do universal; ultrapassou, há muito, as fronteiras do regional e pode se afirmar, qualitativamente, em qualquer contexto.
Aíla Sampaio é professora da Unifor. Poeta e ensaísta, é autora de Os Fantásticos Mistérios de Lygia (2009). E-mail: ailasampaio@unifor.br
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