quinta-feira, 2 de maio de 2013

 

O POVO: 85 anos presente no Ceará VIII
Crônica Raymundo Netto para O POVO

Noite quente e estrelante de 11 de fevereiro de 1974. Creuza do Carmo Rocha chegava em casa, animada, falante e feliz. Vinha da festa de aniversário da neta Lúcia Maria Dummar Asly. Sentou-se à penteadeira. Deitou, por um instante, o olhar na imagem setuagenária no espelho, e tocava com a ponta dos dedos o cabelo da nuca quando seus braços mornos penderam. Albanisa, sentindo o silêncio do cômodo, correu-lhe a tomar o peso da mão: “Mamãe?”
Em 28 de outubro de 1897, nascia. Não conhecera o pai, Joaquim, morto antes. A mãe, Isabel Cristina, de vida humilde, costureira, morava em casa alugada com os seis filhos. Quando Maria do Carmo, Maroca, a mais velha, se casou, levou toda a família com ela, inclusive a Creuza, caçula, espirituosa, alegre e brincalhona, que gostava de ler e de conversar.
No rebentar do século XX, em Fortaleza, o Passeio Público era o ponto de encontro dos rapazes e moças, que lá se iam, em seus melhores trajes para impressionar e chamar atenção. Num desses dias, um jovem e magro telegrafista baiano, nove anos mais velho que Creuza, recém-chegado a cidade, não tirava os olhos da moça graciosa, a esbeltar o vestido, provavelmente feito pela mãe, tendo, à cabeça, um chapéu de abas largas a trazer, em seu cimo, uma pena extensa e alva que parecia acenar para ele. Então, a poesia de sua alma versou em coragem e, ali mesmo, entre as esfinges que enigmavam seu destinovo, tomou-a para si. Em apenas seis meses, noivaram, apoiados por Maroca, a irmã-guardiã.
Foi na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em 9 de fevereiro de 1915, que Demócrito e Creuza se uniram de vez. Em janeiro, entretanto, Demócrito havia assumido uma agência dos Correios em Iguatu, vindo a cidade apenas para se casar e levar a esposa, então com 18 anos. Era ano da grande seca. Não tardariam por lá, pois, quando ela engravidou, o marido, preocupado com as condições de parto, voltou a Fortaleza, ainda em agosto, passando a morar na casa de Maroca. E, em 5 de janeiro de 1916, nasceu Albaniza. Demócrito, com a segunda gravidez de Creuza, alugou uma casa na Barão do Rio Branco, e, com eles, foi a sogra, que auxiliaria com a nova netinha, a Lúcia, nascida na surpresa de sete meses, em 6 de maio de 1917.
A vida não era fácil, nem poderia ser, a princípio, pelo reduzido salário de escriturário pagador dos Correios, que era o que tinham. Mudaram de residência várias vezes e por pretextos diferentes. Aliás, um das queixas eternas de Creuza a Demócrito foi de ele nunca ter adquirido a sua casa própria.
Por outro lado, Demócrito era zeloso, afetuoso e trabalhador. Foi convidado para escrever para O Ceará, e, por iniciativa própria, lançaria a Ceará Ilustrado, revista completamente original para os moldes da época. Por meio do sucesso de sua “Nota do Dia” e de sua revista, Demócrito logo, logo, passaria a agregar em torno de si, tudo e todos que faziam a literatura, a comunicação, a política e o jornalismo de sua época.
Em 1927, quando Demócrito sofreu violenta agressão por parte de oficiais da polícia, um “recado” do então governador, Creuza o recebeu em casa, ensanguentado e com diversas escoriações, carregado por braços de populares. O jornalista tornava-se uma celebridade. Seu nome já era entendido, naquele tempo de poucos suportes de comunicação, como a voz dos oprimidos. Ganhara vulto e leitores, rapidamente, como poucos em seu tempo. Isso, de certa forma, fazia com que estivesse sempre na rua, militando, envolvido em polêmicas, escrevendo para jornais, em reuniões sociais, nos coretos das praças, além de frequentar o círculo boêmio e intelectual. Creuza sabia bem: não adiantaria cobrar a sua presença constante em casa; Demócrito era do mundo! Daí saber mais de seu esposo pelos outros. Era comum ser parada nas ruas para ouvir elogios ao “grande homem” que era o seu marido. Orgulhava-se, é verdade, mas temia. As pessoas não imaginavam o aperto que ela trazia no peito toda vez que ele colocava o chapéu na cabeça, e “conferia” às costas a pistola 32 ou seu punhal, ao atravessar a soleira de casa. Com as pequenas Izinha e Lúcia, chegava a sair de casa a procurá-lo, quando demorava, o encontrando a jantar despreocupado no restaurante da praça do Ferreira. Por vezes, iam apenas as meninas, e lá ficavam com o pai, ouvindo conversas de política, até voltarem juntos para casa. Comum também era assistir a homens armados cruzando-lhe a calçada e colocando os olhos pelas portas e frinchas das janelas. Nas manhãs, também encontrava as paredes riscadas por peixeiras e as janelas e portas marcadas por punhais, em constante ameaça, coincidentemente sempre quando Demócrito chegava animado, falando de nova contenda ou quando se orgulhava da poeira levantada por um texto seu. Ela lia o que ele escrevia e o ouvia. Na empolgação do marido, a fala firme e descontraída... Era como se não fosse com ele, mas era, e muito!
Quando surgiu O POVO, sua ausência tornou-se ainda mais sentida. Trabalhava no jornal e no consultório dentário, para “segurar as pontas”. Creuza decidiu, então, já que não podia estar nesse mundo ao lado de Demócrito, o tempo inteiro — embora fosse costumeiro vê-la com as filhas, atentas e batendo palmas, na primeira fila de seus discursos —, trazer “esse mundo” para dentro de casa: passou a convidar amigos e esposas para tertúlias literárias e, assim, trocavam visitas. Demócrito tinha necessidade de gente, de trocar ideias, e ela também.
Quando da eleição de Demócrito como deputado federal, em 1935, indo ele trabalhar no Rio de Janeiro, Creuza, durante bom tempo se viu sozinha, mesmo recebendo regulares e acalentadoras cartas do marido. Tempo difícil em que contou com a ajuda das filhas e de Paulo Sarasate. Demócrito retornou doente, e ela esteve ao seu lado até o derradeiro suspiro, em 1943.
Creuza, a primeira mulher a possuir título eleitoral no Ceará, adorava jogar “buraco” com as amigas, motivo para se encontrarem, tomarem refrescos, água de coco, comer doces e bolinhos. Nas refeições, era obrigada a tomar remédio para o fígado, dose esta que era compartilhada por quem estivesse à mesa com ela, precisando ou não. Gostava de dormir de rede. Mesmo depois da morte de Demócrito, manteve a habitual promoção de tertúlias e festas. Amigos, políticos e demais personalidades do país marcavam encontro, em cadeiras de balanço de sua varanda, para ouvi-la, pedir votos ou conselhos. Ela, muito franca, dizia o que pensava, mesmo quando não fosse tão doce quanto as iguarias servidas por Hermínia, a sua cozinheira e auxiliar de casa — que falecida, foi sepultada ao lado de Creuza.
Com a morte do genro, assumiu a presidência de O POVO, em 1970, enquanto Albanisa, a superintendência. Na época, J.C. Alencar Araripe, José Raymundo Costa e o jovem Demócrito Rocha Dummar assumiam a diretoria editorial, administrativa e comercial, respectivamente.
O Edifício Demócrito Rocha, atual sede do seu jornal, foi inaugurado em 7 de janeiro de 1974, cerca de um mês antes do falecimento de a grande “Dama d’O POVO”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário