A Casa... Vazia!", crônica de Raymundo Netto em homenagem a Moreira Campos (05.01)
Crônica publicada
em O POVO em 2008
Pois bem, estava
cruzando o Benfica, bairro intelectual e boêmio de nossa Fortaleza, indo
visitar um amigo que mora próximo à universidade, quando vi chegar um fusquinha
verde no estacionamento aberto de um shopping. Como se fossem fogos despertando
a dormência daquela tarde, explodia-lhe o escapamento, traçando no chão uma
trilha de doze parafusos. Os taxistas e pedestres riam daquela “arrumação”.
Desceu do carro um
senhor magro, com cerca de oitenta anos, rosto marcado e pálido, testa larga e
os fios de cabelos brancos puxados para trás das orelhas. Com as mãos na
cintura, olhava surpreso para os lados. Leon, um funcionário que trabalha ali
há mais tempo, gentilmente tentava explicar-lhe alguma coisa. Aproximei e ouvi
quando aquele senhor insistiu, impaciente:
— Mas, meu filho,
você é quem não está entendendo... Eu moro aqui!
Não tinha mais
dúvida: aquele homem era mesmo oprofessor Moreira Campos!
Leon não sabia o
que fazer. Decerto, deveria ser um engano. Fazia já algum tempo que ali
funcionava o estacionamento, e antes, ouviu dizer: "havia apenas uma casa
antiga onde moravam dois velhos", mas que o shopping havia comprado e
demolido a tal casa.
Percebi que o
Moreira, então boquiaberto, deixara cair uma rosa que vermelhejava o viço, como
se a dizer “para tão longo amor, tão curta a vida''*. Ficou assim, estático,
dirigindo um olhar atento e desesperançado para o pequeno rapaz que falava,
falava e falava...
— Vamos tentar
resumir essa história, faz-se longa demais!, concluiu, deixando o moço a falar
com as moscas.
Fly, um cachorro magro
que farejava latas de lixo, parou e pôs-se a latir, arranhando a porta do carro
com a patinha: Dizem que os cães vêem coisas...
Contrariado e
perdido, o professor sentou-se no meio-fio do passeio, ensombrado por um
benjamim, apoiou o queixo pessimista no dorso de uma das mãos e divisou aquele
shopping, mergulhando em si mesmo, encolhido pela tristeza. “As moscas
insistentes provavam-lhe os cantos dos olhos” e ele refletia: “A vida endurece”!
Não via mais a sua
casa, mas por dentro, chorava-a. Ouvia as mesmas vozes, o ranger do armador, o
tilintar dos talheres na cozinha, a zoada das crianças no corredor, o piano da
companheira amada: a Zezé... Passou pela sua cabeça, penso, as alegres reuniões
e o papo literário, o café, o convívio com amigos no pequeno jardim de sua
casa, a delícia da beira da rede na varanda, o desgasto do piso comido por
tantos passos, o gemer de ferros do relógio na parede, o cheiro da terra
molhada pela chuva colorida em iluminuras pelas histórias da Natércia, o cheiro
do inhame quente, do piqui, da manteiga da terra, os passeios na calçada depois
do jantar, e daí, sentiu saudades da penumbra da noite, onde queimava o lume de
um cigarro... Desabafou:
— Não tem coisa
pior do que voltar para casa e encontrar as portas fechadas... O mestre Tchecov
já dizia: “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira”.
As pálpebras
franjavam o olhar plangente. Ele resistia, mas não estava sendo fácil:
— Não podia ficar
para semente, ora! — caiu num silêncio melancólico, uma sensação perturbadora
de não reconhecimento. Sim, aquela casa o abrigara e o acolhera por tantos
anos. De lá, do “buraco da jia”, gabinete construído nos fundos da casa, é que
vaporaram muitos dos seus fantasmas! Agora, eram apenas lembranças que se
perderam no pó das paredes que ruíram. — E os meus amigos, Manelito, Artur
Eduardo, Aderaldo, Colares, Caetano, Sânzio, Pedro, Inês e Ângela, se quiserem
me ver? A casa era tão minha que até já tinha a minha voz. Eu podia falar pelas
colunas, paredes, telhados, janelas... E agora, quando quiserem me encontrar,
como farão?
Abeirei-me ao
contista, mostrei-lhe um livro de sua autoria que, coincidentemente, trazia.
Pedi uma dedicatória. Moreira sorriu, compreendeu meu recado, e tomou-lhe às
mãos.
“(...) tinham
mandado demolir o casarão: queriam espaço para o estacionamento de automóveis,
mais lucrativo (...) O senhor de cabelos brancos comentava:
— Uma pena!
— Isto era casa
para ser tombada. Um patrimônio.
— Não temos
tradição.
— Pura verdade.”
Fez-se novo
silêncio. Recordou sua vinda para a cidade amada, pigarreando um pouco para
depois declamar: “Fortaleza era então provinciana, era menina. Cadeiras nas
calçadas e a tristeza dos lampiões a gás em cada esquina”.
— Pois é, professor
Moreira, mas essas coisas não acontecem só no Ceará, não, viu? No Rio de
Janeiro também deixaram demolir a casa do Machado de Assis.
— Sim, eu sei,
estive com ele... Estava casmurro por conta disso! A casa foi-se indefesa. Nem
os lidos... Contudo, sempre acreditei que “o destino é o mais fértil dos
ficcionistas, aquele capaz de todas as tramas e enredos”. Quis o destino que
esta casa não sobrevivesse. O consolo é que “valem todos os momentos que
deixamos impregnados naquele chão de mosaicos tão antigo.”
Puxando um cadarço
do mocassim e espantando uma mosca que lhe mordiscava o lábio, Moreira olhou a
rua, apontava as pessoas que passavam: uma mulher que, arrastando cinco
crianças descalças e alegres, trazia um prato enrolado com uma toalha; o
senhor de olhos grandes e brancos, onde as contas do terço corriam-lhe pelos
dedos; duas velhas moucas; uma moça de blusa de mangas compridas de bolinhas
com o esmalte das unhas roído, e outra mulher que passava agitada com o dedo em
riste, bradando: “Meu irmão foi um mártir!”
— Está dando uma de
doida, criatura? — perguntou, com sorriso, a ela. Confessou-me: — Toda a literatura
que escrevi se inspirou neste território cearense e em sua gente. Sou seduzido
pelo ser humano e pelo que ele tem de vulnerável! Aprenda, Raymundo: sem
experiência vivida, é raro conseguir-se grande coisa em ficção.
Falo da verdade artística. Para ser arte, tem de se recriar o real, caso
contrário se torna matéria jornalística!
Levantou-se, tossiu
um bocadinho, olhou novamente para o vazio. Dirigiu-se, agora mais tranquilo,
ao Leon. Lembrou e falou de Leonete, sua prima-irmã, enquanto o rapaz recebia as
chaves e registrava a placa de seu fusca: “XQ - 2992”. Moreira deu uma
tapinha no capô duro e recomendou que “tivesse pena do bichinho...” Depois,
colocando o braço sobre meu ombro, perguntou se naquele negócio (referia-se ao
shopping) tinha, pelo menos, um cinema. Adorava cinema! No outro dia, disse,
iria ao Bosque das Letras, tinha tantas saudades das árvores de lá... “As
árvores continuam por lá, não? Olha, olha...”
Chegara a noite, as
corujas apareceram rasgando mortalha “num cair de asas leves, impressentidas,
como num sopro de morte” no alto do vazio que restou.
(*) Último
verso do Soneto 88 de Camões
Moreira Campos (1914- 1994)
nasceu em Senador Pompeu, Ceará. Contista, fez parte do grupo Clã e é
autor de Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), O
Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), Dizem
Que Os Cães Vêem Coisas (1987) e outros. Foi autor da Coluna
semanal Porta de Academia (1987 a 1994) no jornal O
POVO. Algumas falas e trechos do texto são adaptações e transcrições da
produção de Moreira Campos.
Um comentário:
Obrigado, Silas, por mais essa postagem. Abraço.
Postar um comentário