Capa: Ednardo Gadelha
O mundo de Eudismar Mendes
Por Silas Falcão
Avó de cães mestiços, novo livro de Eudismar Mendes, que teve o prazer de vê-lo selecionado pelo edital da Secult (2010) resulta do seu olhar de paisagem sobre as atitudes humanas registradas literariamente com a simplicidade do caráter da autora. Tive a simpatia de conhecer Eudismar, também autora de Sangue sobre o asfalto – 2004 – e Máscara da face – 2007 – através dos nossos encontros literários do Abraço Literário (SESC) e da Associação Cearense dos Escritores (ACE). Nela sempre assisti a atitudes de uma eterna jovem, dinâmica, saudavelmente inquieta. Ela é o que vislumbra em Caracol de mim: “Meu sonho é do tamanho do momento que estou vivendo porque sou muito mais que tudo que possa me acontecer”. Em Sangue sobre o asfalto, a escritora se apresenta ao leitor: “Em cada página tem um pouco de mim, pois a despeito de procurar fazer arte literária, escrevo de uma maneira despojada numa linguagem coloquial para que você, leitor, sinta-se mais à vontade para entender os meus textos”. E neste seu novo rebento literário, permanece a linguagem coloquial, sincera, sem rebuscamento, características da crônica.
As páginas que compõem este livro expõem uma galeria de personagens e estórias. Caso de polícia é um exemplo. Uma prostituta é vitima de um vigarista que, maliciosamente, pretende não pagar- e não paga - pelo “programa”, afirmando que “uma louca entrou no meu carro e não quer sair de jeito nenhum”. Essa crônica é uma denúncia da humilhante realidade por que passam milhares de prostitutas, vítimas da ausência de escolaridade, das famílias desestruturadas e de uma sociedade que condena os efeitos sem analisar as causas sociais dos comportamentos humanos.
A mulher e suas bolsas é um mistério estabelecido: por que uma mulher linda e sensual usaria simultaneamente três bolsas em tons diversos de cores, formatos e adereços? “A vida é cheia de pacotes”, afirmou Mário Quintana.
Suas inquietas crônicas espelham iniquidades, como as denunciadas em Distinto vendedor. Caminhando despreocupada, a narradora observa um vendedor numa bicicleta engalanada de balões, cantarolando distintamente o anúncio de doce gelado, sapoti, coco babão, quando alguém grita: “Cale a boca, seu palhaço!”
Apaixonada por Fernando Pessoa, Camila, personagem de Interiorização, é uma jovem contempladora de estrelas que se conscientiza de que “só posso ouvir a palavra, se meus ruídos interiores forem silenciados”. A autora, através da personagem citada, nos transpõe à “arte de ouvir” como habilidade essencial para o sucesso em nossos relacionamentos interpessoais. No caso de Camila, saber ouvir faz toda diferença na arte de amar. “Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito. A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas”, é o que afirma Rubem Alves, em Ostra feliz não produz pérolas. Você conhece algum caso de amor desfeito por casais que não detinham a espiritualidade de saber ouvir?
“Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz”. Lembrei de Manuel Bandeira quando li Sob o mar e a sorte, crônica social em que Eudismar inclui no mundo das dificuldades existencias um flanelinha trabalhador. Sem nome, lambuzado de oleosa farofa, um dia, escorregando pelo bueiro da orla marítima - seu local de trabalho – e nadando, ele deságua numa ilha. Grita de alegria e chora ao saber que os policiais não mais o expulsariam do banco da praça onde, às vezes, dormia sem antes ouvir os insultos de “vagabundo”. Essa ilha, onde as lágrimas são proibidas, se tornou a Pasárgada do flanelinha que agora, sob a bênção do senhor dos mares, Netuno, irá viver, “entre a superfície e o mar”, um grande amor ao lado da companheira.
As avenidas das grandes cidades (e como elas são humanamente pequenas!) não trazem apenas anúncios de produtos e serviços, exaltando o ter pelo ser, assaltos, amores desfeitos, infância abandonada. Existem nelas adultos sem bairro, sem cep, sem sonhos, sem identidade social. Essas avenidas são vitrines desbotadas expondo pedintes de variadas formas físicas. Medo no sinal, crônica de poucas linhas, é psicologicamente tão extensa quanto as dores da pobreza material vivida por milhares de pessoas representadas pela personagem. Nessa crônica, Eudismar revela um mendigo aparentemente saudável e bem vestido. O que nos surpreende na narrativa esconde-se sob o boné que ele usa: os dois níveis da cabeça. Metade normal e a outra com uma cavidade de se colocar uma tangerina. A cena impacta. Insulta piedade, compreensão de que uma pessoa com essas características físicas sempre será desprezada pelo mercado de trabalho vorazmente defensor da aparência imaculada. Nossos preconceitos criam milhares de mendigos.
Idosa. Pele escura. Sem idade expressa na certidão de nascimento. Vivendo isolada, emburrada dentro do seu esconderijo no mato. Quando ela ia à pequena cidade, as crianças a insultavam. Francisca Maria da Conceição – Chica Pão – é uma das vidas humanas resgatadas pela literatura e um episódio real na vida de Eudismar. Sem família, a pobre moribunda viveu intensamente a solidão, a pobreza, e ”apenas sorriu para morrer”. Reli Chica Pão inúmeras vezes recordando o Chico Budu, versão masculinizada de Chica Pão. Diariamente ele passava na rua da minha infância conduzindo gemidos peditórios dentro de um pedaço de vida. Nós, as crianças, o insultávamos. Ele sofreu muita solidão, pobreza e morreu sem sorriso.
Em Avó de cães mestiços, crônica que dá título a este livro, Eudismar metaforiza, através das personagens, o real observado nas relações humanas: egoísmo e preconceito. Marta recebe de seu “amigo da onça”, um poodle que compartilha com a comunidade canina uma nova vida. Certo dia ela encontra Dandan – uma legitima yorkshire – e Rex – o poodle – se amando. Marta se enfurece percebendo a possibilidade do nascimento de um descendente mestiço. Desloca-se a Canindé para fazer uma promessa a São Francisco. Doa alimentos aos pobres. Mas essas condutas místicas não a impedirão de ser avó de cães mestiços. O que, para ela, é uma humilhação de mil latidos. O que a autora manifesta nessa crônica é a contrariedade diante dos comportamentos bárbaros que sancionam preconceitos e egoísmos. Ainda é lei oral, principalmente nas cidades interioranas, a tentativa de bloquear casamentos entre casais de famílias socialmente diferentes, objetivando perpetuar a imobilidade social. Dandan e Rex são representações simbólicas de milhares de Dandans e Rexs em formas humanas que sofreram ações morais paternas – nesta crônica a Marta representa o pátrio poder, o exclusivismo – com o propósito de impedir a união matrimonial de casais pertencentes a classes sociais distintas.
Avó de cães mestiços, esta coletânea de crônicas das quais destaco também O negro Nicácio, Conversa ao telefone, Não dá para não sentir saudade, O crucifixo e a mosca, encena ações humanas fragmentadas na visão social e psicológica. Qualquer página é um começo e um fim. Neste livro não há necessariamente um compromisso com temas da atualidade. As narrativas não obedecem a uma ordem do tempo. Eudismar, dentro do seu mundo, observa e registra o que todos os escritores buscam como matriz literária dos seus textos: a realidade humana.