Eco no Labirinto
Carlos Roberto Vazconcelos
Inicia-se o ano de 2006. Surpreendo-me lendo o romance O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco, num momento em que só aumenta, nas livrarias e bibliotecas, a procissão em busca do Código da Vinci, de Dan Brown.
Às vezes ando mesmo na contramão. E tenho manias muito pessoais: visitar cemitério em dias comuns, que não o de finados; preferir os templos vazios às missas ou cultos; cascavilhar nas locadoras de vídeo não os novos lançamentos, mas os eternos clássicos... Ler o Eco, em vez do Brown?
Na verdade, tentei ler O Nome da Rosa em 1991. Desci à biblioteca, abracei o livro e me dispus a decifrá-lo. Já adiantado na leitura, foi com decepção que verifiquei faltarem trinta páginas do volume. Devolvi-o à prateleira, assisti ao filme mais de uma vez e nunca mais quis saber do calhamaço.
Talvez eu demore quinze anos para decidir ler O Código da Vinci... e Anjos e Demônios... e Fortaleza Digital... Existem modismos, mesmo em literatura... Não sou obrigado a segui-los. Sou anacrônico. Não pela vaidade de ser. Mas por que nossa geração está cada vez mais ávida por novidades? Vivemos a era do descartável. A música de hoje não sobreviverá amanhã. Os derradeiros quintais deverão ser devastados para os arranha-céus florescerem. As estrelas que se apaguem para a sobrevivência do neon. Hoje leio Eco, mas deveria ler Brown?
A edição que tenho em mãos (33ª) é de 1991. Não havemos de nos assustar com tantas reedições, pois o livro de estreia de Eco foi realmente um êxito de vendas no mundo inteiro, um “sucesso unânime de crítica e público”, como veio anunciado na própria capa. Um best-seller (atente-se para a ambiguidade dessa expressão).
O autor dialoga com o escritor inglês Conan Doyle, estabelecendo referências explícitas ao personagem Sherlock Holmes. O “herói” da narrativa é Guilherme de Baskerville (primeira referência óbvia), um investigador cerebral, capaz de deduzir com acerto o que não viu. Lógico, exato, cartesiano, politicamente correto e de fina ironia. No cinema, nenhum outro ator poderia encarná-lo melhor do que Sean Connery. Perfeito. Aliás, justiça seja feita, o filme é uma obra-prima à parte. O parceiro de Guilherme é o noviço Adso, espécie de Watson, que vive os acontecimentos junto ao mestre e também se responsabiliza de narrá-lo à posteridade. Encontra-se uma vez o epíteto consagrado: Elementar, meu caro Adso (Watson), embora ele haja se popularizado sem aparecer uma vez sequer na obra original de Doyle.
A história é uma espécie de policial noir. Crimes misteriosos, insinuações eróticas, traições, cujo cenário é um mosteiro medieval da velha Itália. O livro é carregado de erudição (como não poderia deixar de ser, em se tratando de Umberto Eco), mas tem como leitmotiv a desmistificação religiosa, a denúncia da hipocrisia ocultada por trás dos hábitos, e principalmente, o fanatismo superando qualquer outro sentimento, inclusive o de Deus. Não seria justo negar que, em alguns momentos, o ritmo da narrativa é arrastado, monótono, bastante enfadonho, com incansáveis citações latinas e erudição escorrendo pelo ladrão. Algumas páginas parecem até desnecessárias para um enredo brilhante. Mas isso não ocorre também no Crime e Castigo, de Dostoiévski? No Guerra e Paz, de Tolstói? N’O Corcunda de Notre Dame, de Vítor Hugo? Não seria essa característica própria dos romances destinados a serem clássicos? Ou seriam prolixidades de estreante? Pensa-se até em desistir, mas a curiosidade é maior. Por que tantos crimes no ambiente sacrossanto? Onde há o crime deve haver o criminoso. Instala-se o suspense.
Eco vai nos levando pelos labirintos do mosteiro, e das naturezas humanas, e da biblioteca, ponto crucial de toda a trama. Lá está Jorge de Burgos, personagem inspirado na figura de Jorge Luís Borges. O cego e seu labirinto. O minotauro à espreita... A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás.” (Eco, p.187). O labirinto é o símbolo mais evidente de estar perdido. (Borges).
O próprio enredo labiríntico da obra é intertextualidade. Dialoga com o conto A Biblioteca de Babilônia, de Borges. Eco valida o conceito do velho mestre de que livros podem nascer de livros, literaturas podem derivar de literaturas. Outro gênio, nosso Machado de Assis, também sabia estabelecer a perfeita diferença entre a recriação e a mera imitação.
Ah, e quanto ao título? A leitura não torna explícito. Que rosa? O conhecimento, a sabedoria, o sagrado...? Aí começa o mistério. O autor é semiólogo, homem preocupado com a representação dos signos. Possivelmente, o título foi inspirado em um dos versos de Romeu e Julieta: O que há em um nome? O que chamamos rosa cheiraria tão docemente com qualquer outro nome... Isto só reforça ainda uma vez a tese da intertextualidade
Eco nos conduz às consequências do fanatismo, fio tenro entre a razão e a loucura. No fim, resta-nos a lição de cinco linhas apresentada em mais de quinhentas e sessenta páginas:
Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, freqüentemente antes de si, às vezes em seu lugar. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.
Em suma: Foge do presunçoso que detém a verdade absoluta.
Fica a pergunta: Ler ou não ler O Nome da Rosa? Aos mais exigentes, sim. Aos imediatistas, vejam o filme. Mas não esqueçam: a obra literária original sempre superará qualquer adaptação, mesmo as superproduções cinematográficas. Ora, quem dera pudéssemos ler os clássicos sempre nos idiomas originais. Ah, quem dera!