O romancista Carlos Vazconcelos
Por Batista de Lima
Caderno 3, Diário do Nordeste
O leitor de romance precisa ser consciente de que o fôlego para escrever uma história longa necessita encontrar parelha na sua leitura. O que acontece nos tempos atuais é a preferência pelo conto. A história curta é mais adaptável ao corre-corre desta modernidade exaurida. É coragem, pois, o cultivo do romance. E isso não falta em Carlos Vazconcelos, com z. Meter-se numa cela de prisioneiro e escrever cem páginas sobre os dramas e as angústias de um preso inocente, tem tudo para ser uma narrativa modorrenta e cansativa, mas não é. Ele trabalha com abismos que estão muito abaixo do piso da cela, e muito acima do teto da prisão.
Vazconcelos suscita reflexões sobre o nosso sistema prisional, sobre os meandros das operações da justiça e sobre o comportamento dos operadores do Direito. Não é necessário atribuir-lhe intertextualidades. Ele conhece bem as formas de vigiar e punir dos dias de hoje, dos nossos calabouços. Como conseguiu tanto conhecimento, não importa. O que interessa é que as entranhas da prisão são mostradas através de uma narrativa em primeira pessoa, de forma tão crua que a impressão que se tem é de que o autor-personagem estagiou como prisioneiro, por quinze anos para escrever tão bem sua saga. Já que a única prisão que Carlos Vazconcelos tem curtido por toda a sua vida tem sido o labirinto estrutural da frase, pressupõe-se ser essa obra um trabalho de demorada pesquisa.
Como leitor, tive que me aprisionar em sua companhia numa dessas delegacias de nossa cidade, para conhecer o intestino putrefato das nossas casas de detenção. Por isso que, mesmo ficção, seu livro é uma denúncia. A primeira morte que o personagem enfrenta é ver seu amor se lançar do alto do edifício. Águida ao se jogar para a morte, não foi sozinha. Levou seu amor, levou seu autor e levou seu leitor. A fala de Águida foi de tripla fatalidade e vai reverberar em cada um que ler esse livro. A segunda morte do personagem-narrador foi sua condenação, sendo inocente, foi a perda de uma liberdade que já não tinha.
Outras mortes podem ainda lhe serem atribuídas como a perda do nome. Ele vira um número. Ninguém o conhece pelo verdadeiro nome em nenhum momento do livro, porque seu nome é o do autor, é o meu, é o de Águida é de quem se meter a ler a história. A última morte do personagem é ter que estar vivo e solto sem se livrar de si próprio. Ao final, verifica-se que a única liberdade alcançada é a de Águida ao voar do mais alto do edifício. Nós outros estamos acorrentados, sem conseguirmos nos libertar de nós próprios e dos outros. Pronto. Poder-se-ia parar por aqui a análise desse livro. Acontece que outras falas gritam de suas páginas, pedindo vênia para serem apresentadas.
Uma dessas falas segundas é o determinismo que margeia a narrativa, colocando seus personagens numa situação sem escapatória. Até o Deputado, crápula condenador do inocente e pai da suicida, termina com sua punição, ao sofrer terrível acidente na estrada, em noite de chuva. Até o bom moço, irmão do personagem principal, morre, que é para não escapar ninguém, nem anjos nem demônios. É, pois, um texto marcado pela densidade dos grandes romances clássicos. Carlos Vazconcelos desce aos porões das prisões para chegar aos porões da criatura humana nos seus momentos extremados. Narra porque conhece os limites da natureza humana.
Esse título "Os dias roubados" poderia ser "O processo", ou "Metamorfose", ou "Angústia", ou "Memórias do Cárcere". Qualquer que fosse seria um conjunto de "Revelações", de um Febrônio Índio do Brasil, do século XXI, nesse caso, vítima de um erro judiciário. Afinal, deixar o covil em que permanecera quinze anos e ser colocado na rua não significa liberdade. Ele continua carregando nas costas aquela masmorra travestida da impossibilidade de reencontrar a vida que lhe foi tirada. Esse drama é bem urdido pelo autor, numa tescitura de quem é familiarizado nas lídes das letras. Como licenciado em Letras, pela Universidade Federal do Ceará, Vazconcelos tem credencial de sobra para navegar nessas águas.
A Expressão Gráfica e Editora marcou positivamente o ano de 2013 em editar essa obra, que precisa ultrapassar os muros desta província e se mostrar também lá fora. Essa ficção está comprometida com a realidade. Os "Relatos da Sombra", manuscritos supostamente deixados na cela por um prisioneiro falecido, é genial invenção do autor, para tomar como ponto de partida para sua narrativa. É também uma suposição de que muitos escritos, na verdade, podem ter se perdido em circunstâncias similares. Até nessa escolha, o autor foi inventivo, deixando sempre transparecer seu lado denuncista ao tratar de um tema tão crucial nos dias de hoje que é o sistema prisional decadente do nosso Brasil.
"Os dias roubados" é uma narrativa que põe o leitor para refletir. Leva a uma reflexão que extrapola o arcabouço correcional das prisões e vai para as ruas, para uma análise daquelas criaturas que, tendo estado reclusas, são postas no seio da sociedade, após a libertação. Afinal, se nossas prisões são escolas de crimes, o ex-preso necessitaria de acompanhamento após a conquista da liberdade. Se ele não saiu mais criminoso após cumprir a pena, sai destruído psicologicamente, sem condições de assumir a nova vida. Esse é o caso do personagem narrador do livro. Mesmo estando livre, os traumas do aprisionamento não o deixam mais. Por isso que esse livro de Carlos Vazconcelos se torna um alerta para autoridades da justiça pois nossas prisões roubam os dias que restam a prisioneiros ou libertados.
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