sábado, 13 de agosto de 2011


    Entre a analise descritiva de Machado e a crueza de Nelson Rodrigues

Rejane Nascimento é graduada em letras, especialista em dinâmicas de grupos, pós -graduada em gestão de pessoas. É revisora de textos da Premius Editora.

A obra literária de Bernivaldo Carneiro desafia o leitor a conhecer minuciosamente os personagens que dão vida às narrativas. Propositadamente no plural, pois não se trata apenas de um enredo, mas de vários que se entrelaçam: é a história de Dora, a de Jacira, a de Fred, a do filho de Fred, a de Maçaroca, a de Beth...
O autor faz com que cada personagem seja protagonista de sua história, como de fato ocorre na vida. Logo, não há tempo para se deter em personagens secundárias. Daí, a descrição pausada de cada tipo, o que leva o leitor, às vezes, a se inquietar, quiçá, à falta de prática do cidadão pós-moderno em escutar ou auscultar o outro.
Assim, Devaneios, Delírios & Desamores requer um hiato no tempo e no espaço para ser apreciado. Alguns parágrafos são crus, cortam os brios e os pudores dos desavisados. Como retrata tipos essencialmente humanos, revelam as mazelas da natureza humana, penetra no sombrio da alma, joga luz nos recônditos, mexe com sentimentos e pensamentos que tanto nos custa acalmar e calar.
Em nenhum momento se percebe juízo de valor na narrativa. Pelas falas das personagens é possível construir diversas visões de mundo. A vida é um caleidoscópio.
Ao leitor de Devaneios, Delírios & Desamores cabe um alerta: o fôlego. Como a narrativa não é linear, é imprescindível a atenção de quem lê às sutilezas que o narrador apresenta como se fio fosse, para então se desfazer o imenso novelo. 
Outra particularidade da obra é a sensação que Bernivaldo nos deixa de que as histórias não param ali.  Como estarão os filhos de Dora? E FJ concluiu seu curso superior?

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

                             José Pedro e as irmãs, em Recife

              Quando o Amor é de Graça IV: em nome do Pai!
Crônica de Raymundo Netto para O Povo

Não há quem dê nego à importância do nome, esta designação oficial de nossa existência dita cuja, seja ela a mais vã impossível, atribuída seja por quem for, a nos acompanhar pela vida e à morte, falando de nós ou por nós como uma marca, às vezes como uma chaga. Um nome bem escolhido nos coloca à frente, principalmente quando inicial “a”, ou, ao contrário, nos diminui, quando feio, cacofônico, antiquado, com sentido dúbio ou estranho, fruto do engenho experimentalista dos pais. Há tantos nomes bonitos, fortes, significantes — em alguns países asiáticos realizam-se cerimônias dirigidas por sábios que “adivinham” a função de mundo daquele ser e a coloca em seu nome — mas na hora da escolha de um nome, os pais ou os enxeridos de plantão — os “pitaqueiros” — esquecem de atentar para a criaturinha que o levará às costas, às vezes, suportando o ridículo de uma predileção momentânea.
Meu nome é Raymundo Netto. Nasci numa noite de São Pedro. Fogos estrepitavam nos céus e minha mãe não duvidava que me nomearia “Pedro”, assim como meu pai, José Pedro, que nascera à mesma data. Entretanto, papai dizia-lhe “Não. Terá o nome de meu pai: Raymundo!” Chegava à minha mãe o tom grave do nome. Insistiu na tese “José Pedro Júnior” — ou filho —, afinal, era tão raro um filho, e logo o primeiro homem, nascer no mesmo dia de um pai... Mas este não vacilava: “Será Raymundo!”.
Minha vó Alice, a mãe de meu pai, tentava: “Pedro Raymundo?” “Não, parece nome de sanfoneiro...”, entendia mamãe, desconsolada, e pensou: “Pelo menos será Raymundo Netto, e poderei chamá-lo por Netto”. Certo assim ficou e nos ecos mais longevos de minha vida, nem lembrava por um dia daquele Raymundo. Cresci sem precisar dele, não tendo por ele nenhuma afinidade, sem encontrá-lo, apenas raramente, e reconhecendo nele a cara de “Hã? Eu?” nas vezes em que assim me acusavam, mas se não insistissem, passava-me. Até as professorinhas, nas reveladoras chamadas de classe, o preteriam. As garotas da velha ponte quando não saciadas após o Netto apresentado, insistiam: “Netto de quê?”. “Raymundo...”, e elas prosseguiam: “Pois então, Netto...” É, o pobre do Raymundo não emplacava mesmo. Um azarão, condenado a esconder-se sob máscara de ferro nas masmorras cartoriais. Não fosse encargo de capa de livro, há seis anos, inda estaria morto.
De assim, sempre na mesa larga de família, em volta com o casal paterno, vez ou outra, numa espécie de efeméride infantil, tornava-se assunto: “Como vocês tiveram coragem de, olhando para aquele ser indefeso, careca e banguela, gritar-lhe à cara: Raymundo?”. Era graça, mas mamãe baixava os olhos e passava: “Foi seu pai...”. Este calado, não fosse com ele. Estranhamente, aqui constato: nunca me chamou por toda a vida pelo primeiro nome. Nunca de jamais!
Anos-há, porém, recorri como sempre, parecia-me engraçado, o assunto. Mas, desta vez, meu pai levantou-se, ainda calado, dirigiu-se à porta da cozinha e, foi de lá, voltou-se de banda a voz calma e segura: “Se você quiser mudar o seu nome, pode mudar, mas eu escolhi para você o melhor de todos os nomes que eu poderia: o do meu pai!”

Contato: raymundo.netto@uol.com.br
Blogue AlmanaCULTURA: http:// raymundo-netto.blogspot.com

terça-feira, 9 de agosto de 2011

             
                                                                          
          Corrosão
Carlos Vazconcelos

Por dentro do casarão
os ratos roem o tempo
roem o passado onírico
vitrola, salão de festa

deitado porém insone
ouço os ruídos, roídos
tenho medo de dormir

roem as rótulas da porta
roem as ripas e os ritos

ranhuras no corrimão
rasuras na certidão
rasgos no cimo do oitão

por dentro do casarão
cupins corroem as lembranças
corroem o passado intato
bengala, biblioteca

insone porém deitado
ouço o ranger do portão
tenho medo de acordar

quedam-se vigas e estrados
quedam-se torres e lendas

som de relógio enguiçado
rumor de reza rosário
rumor de riso refrão

por dentro do casarão
traças estraçalham trevas
desvirtuam tradições
alcova, criado-mudo

deitado insone porém
ouço grilos, pirilampos
tenho medo de sonhar

rompe-se a cumeeira
rompe-se a madrugada

rastro parede porão
retrato recordação
correntes e corrosão


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

                             

                15 DICAS DE CONSERVAÇÃO DE LIVROS

Livros são bens valiosos, talvez os mais valiosos de um amante da literatura. Confira as melhores formas de mantê-los sempre em bom estado.
01-A melhor forma de guardar seus livros é mantê-los de pé, enfileirados e rigidamente perpendiculares à prateleira. O peso dos livros altera seus formatos quando empilhados, além de o acesso a eles ficar dificultado.

02-Caso seja inevitável empilhar, deixe os maiores na base e não empilhe mais de três volumes.

03-Cuidado com a pressão. Uma vez enfileirados, tome bastante cuidado para não pressionar demais um contra o outro. Espremê-los pode deformá-los, marcá-los e, na tentativa de se retirar da estante, machucar a capa. A distância ideal é a que permite que o livro, quando puxado (sempre pelas laterais, nunca pela parte superior da lombada) deslize suavemente para a sua mão.

04-Livros precisam de segurança. Preste muita atenção à espessura das prateleiras, pois livros são realmente pesados e precisam de apoio e segurança. A prateleira escolhida deve estar ao menos alguns centímetros distantes da parede, para evitar a umidade desta. Deve também ser de aço, porque o vidro pode se tornar perigoso e porque a madeira se umedece e atrai fungos e insetos, além de envergar com mais facilidade sob o peso dos livros.

05-Não dobrar as páginas é um conselho básico, porque além de não ser bonito isso as deixa mais frágeis. Caso seja inevitável, desdobre o mais rápido que puder. Também é importante não esquecer dentro do livro nenhum tipo de material que possa marcar ou manchar as páginas, como folhas e pétalas de flor, marcadores de página, papéis, clipes, notas (especialmente as de dinheiro) e papeis adesivos. A forma ideal de marcar suas passagens favoritas é copiá-las em um caderno à parte.

06-Não encape. A fita adesiva marca e danifica o papel. Papéis de presente sufocam os livros quase tanto quanto o plástico.  Papéis como o papel pardo são ácidos e perigosos para as páginas dos livros. Encapar com papel do tipo contact, além de ser difícil de colocar e não durar tanto quanto uma capa simples, é um decisão irrevogável.  

07-Diga não aos plásticos. Pode parecer uma boa ideia guardas os livros em sacos plásticos individuais, para prevenir danos e protegê-los da poeira, mas não é. Caso seja extremamente necessário, faça sempre alguns furos em cada plástico, para que o livro possa respirar. Nunca feche o plástico com fita adesiva nem com grampos. Nunca lacre e nunca embale a vácuo.

08-Mas existem capas removíveis. Elas são encaixadas na capa dos livros e a protege durante o manuseio. Podem ser usadas enquanto o livro está sendo lido ou levado na bolsa ou mochila ou retiradas quando o livro voltar para a estante. São as ideais.    

09-Limpeza é essencial. Procure estar com as mãos limpas e secas, inclusive livres de poeira, ao manusear seus livros. Nunca coma enquanto lê, para evitar sujar as páginas – não há cuidado que possa evitar completamente um acidente. Além disso, migalhas e outros resíduos atraem traças e cupins. Pelo mesmo motivo, não molhe os dedos com saliva antes de virar a página.

10-Escolha o cômodo certo. O local onde serão colocados os seus livros deve ser limpo, seco e arejado. Deve ser iluminado, mas não em excesso: deve ser livre da incidência direta do sol, q       ue desbota e amarela a capa e as páginas dos livros. Estantes fechadas devem ser abertas periodicamente, para que o ar circule.
11-Para a limpeza dos livros use apenas um pano macio e seco. Tire o pó com frequência das partes mais expostas, como as lombadas. Se já faz um bom tempo que sua biblioteca não passa por uma faxina livro a livro, recomenda-se o uso de luvas de borracha e máscara de proteção – aquelas usadas para evitar resfriados.  

12-Possui um grande acervo, que ocupa mais do que uma ou duas estantes? Caso sua coleção seja realmente grande, vale a pena investir na contratação de um profissional especializado na limpeza de bibliotecas. Ele saberá usar cada técnica necessária para que tudo fique perfeito, além de saber diferenciar poeira simples dos fungos perigosos à saúde.

13-Para armazenar revistas, inclusive as de histórias em quadrinhos, os conselhos anteriores são válidos. Existem nas papelarias, organizadores e arquivos muito uteis, que ajudam a manter as revistas de pé. Outra dica importante é que os grampos usados para grampear as páginas podem enferrujar. Para evitar isso, o ideal é tirá-los com cuidado e costurar as páginas, usando linha simples, agulha e muita atenção. Para revistas de lombadas quadrada, como os mangás, sejam de capa mole ou capa dura, valem as mesmas dicas dos livros: sempre em pé, enfileirados e posicionados a 90° da prateleira.
  
14-Mantenha fora do alcance das crianças pequenas e dos animais domésticos. É bom que as crianças sejam familiares dos livros, gostem de tê-los por perto e aprendam a manuseá-los, mas devem ter seus próprios para isso. Quando pequenas, devem mexer nos livros dos adultos apenas sob supervisão.

15-Caso empreste seus livros, mantenha uma planilha atualizada com qual livro está emprestado e para quem, além de algumas formas de contato com quem pegou emprestado, como telefones e e-mails. Não deixe de passar para a pessoa algumas dicas de conservação

Pesquisa: Silas Falcão
  

Devaneios, Delírios e Desamores




Por Sonia Nogueira
Poetisa, cronista e contista


Devaneios Delírios e Desamores. Romance escrito por Bernivaldo Carneiro com 36 capítulos, 382 páginas deliberando a mente numa ficção sem desligar-se de fatos reais do cotidiano. Sim, quando escrevemos a mente recria situações nunca impossíveis da vida prática e costumes adquiridos no recôndito sutil da sociedade em que vivemos.

Nos primeiros capítulos o sentimento de ser pai projetou seu coração no futuro promissor do filho, imaginando a profissão sem deixar de falar da hábil criança inteligente, interativo, travesso, hiperativo e poder de decisão diante de fatos inesperados e respostas prontas no momento exato. Sem omitir as conquistas amorosas desde cedo.

Bernivaldo firmou consigo o compromisso de escrever esta obra. Há um apanhado largo de leituras. Quando cita diversos autores, faz comparações estabelece crédito de escritor atento e disposto a informar o leitor nas suas andanças criativas.

O pensamento viaja em situações diversas, basta olhar e deitar na perplexidade dos fatos. Inicia um capítulo com ousadia e termina com ousada maestria.

Porém, o pano de fundo do romance se deleita com os delírios de amor, das filhas do senhor Felicíssimo. Pai conservador impondo em pleno modernismo que se conservem pudicas até o casamento para não manchar a honra da família, árvore genealógica de longa data.

Pobres filhas que se deram ao luxo e prazer de fazer da vida mundana o despontar da vida diária. Bonitas, sensuais e infiéis usavam e abusavam da lascívia para satisfazer os desejos e afrontar ao pai, encoberto de desgosto e vergonha.

A infidelidade aos “maridos” virou rotina. Saber de quem era um filho só na sorte da aparência quando nascia. Uma de tanto maltratar o marido provocando a morte decidiu ser irmã de caridade, mas não vingou... Vários episódios tomam espaço nos capítulos, entra devassidão, prazeres e sensualidade, dos personagens...

Bernivaldo Carneiro tem estilo pessoal, talento engenhoso. A letra corre fácil nos seus devaneios, o vocabulário ora simples, ora de alta projeção vai se mesclando sem se perder na compreensão dos fatos.

Não opto por comparar autores e sim apresentar o essencial da obra, deixando a certeza que cada escritor é único, com estilo especial e cada criação revela o “eu essência” do escritor.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011



                                                               
                                                       ÂNUA
           
                                           Carlos Nóbrega
           

§. De março a abril
as ruas ficam talhadas de guarda-chuvas,
as mulheres usam cores mais brandas no rosto,
tudo se torna mais pálido,
verifica-se um estio absoluto de borboletas no céu
porém o ar se satura de outras asas
e as pedras amolecem de orvalhos,
enquanto para dentro dos meus olhos
escorrem as águas da nostalgia.

§. Mais que dezembro
fevereiro é feérico
Fevereiro é feérico
porque os olhos estão acesos
    e o mês se unta com o humor das axilas.
E saltam da pele
músculos e calos,
cicatriz e gritos
seios e lágrimas,
todos os sinais de que a carne vive,
e a música dança
ao ritmo dos corpos.

§. Agosto é o mês dos grandes tédios
e das grandes dores,
todas as sombras do mundo
    ganham força em agosto,
e ele rasteja no tempo
    como uma serpente perdida
louca para atravessar o deserto,
E que nos morde,
agosto nos morde
com suas trinta e uma presas de peçonha
    se acaso atravessarmos
suas horas de cabeça baixa.

§. Porém maio é aspergido de progesterona,
os homens estão mais sólidos
porque as mulheres estão de grinalda;
Neste mês fêmeo
    há festejos à deusa cristã,
    as mães choram de felicidade,
e pelos rasgões da cara
onde se alojam os olhos,
e pelos narizes,
e pelos rasgões da carne,
e pelos rasgões da terra,
  aonde põem-se as sementes
o que há de ser flor desabrocha . . .

§. . . . pois eis chegada a safra das andorinhas
e do pontilhado dos milhos
nas micaretas da primavera que há em junho
E esta safra põe uma máscara alegre
na face enrugada da terra
e a face da terra sorri dos rojões e dos foguetes
e das bandeirolas
§§. E os elementos da natureza
embora desiludidos
dançam e cantam de mãos dadas ainda,
Ainda rememoram a inocência perdida
a inocência esmagada
pelo rugir da Máquina.

§. Oh noitezinha de julho
Oh nuvenzinhas da noite
sobrancelhas da lua cheia,
ide buscar minha vida
porque a que eu vivo é alheia.
§§. Há, sim, uma escassez de juventude
nas ruas de julho, e uma escassez de fardas
e um curto declínio da ciência,
Mas os aprendizes da vida
seminus nas praias e piscinas e bares
ficam sorrindo entre si
para que seus corpos e suas almas
completem as férias do mundo.

§. Nascemos em outubro
Eu e os cajus
nesse mês arrependido do calendário.

§. O nome dos dias
a posição do sol e a vontade dos trópicos
o volume dos rios
os humores do Atlântico
o incêndio que portamos do agreste
e o pânico que medra na floresta,
Essas coisas todas se inocularam em nossa vida
como o vírus balsâmico das maravilhas.
Presta atenção:
o aracati e o minuano
são outras peles na tua pele,
E os trovões só se completam
  em teu ouvido.
É natural pois que nossas almas estejam impregnadas de outubro.
Por isso aos domingos nos sentimos um tanto vegetais
enquanto aparentamo-nos com pedras
nas noites quentes,
nas noites fundas esquecidas de amanhecer.

§. Mas há outros tempos no tempo
que não pulsam nos relógios
e nem no pulso dos homens
e é o que mais me pressiona
(não é o tempo dos mortos
e nem aquele dos deuses)
O que mais me impressiona
é o que não aconteceu.

§. Deus me deu escrevesse este poema
e eu o faço
e o dedico aos transeuntes.
Passaram por essas linhas
o que passa em minha vida:
nenhum herói, nenhum semideus.
Às vezes uma brisa,
às vezes um fruto,
às vezes um seio
intumescidos de repente
em setembro,

pois muitas caleças cruzaram
a comédia humana
e quantas naus se perderam
na saga lusitana
e quantos trens se foram
em busca do tempo perdido
e quantos dias percorremos
- e dizemos o nome dos dias
o nome dos meses
o número dos anos
os nossos nomes,
mas tudo é sem termo:
a obra inacabada
a vida inacabada - ,

             E não chegamos,
e nunca chegaremos
pois somos, principalmente, feitos do que virá.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

   

                                           TARÂNTULA


Crônica de Pedro Salgueiro para O Povo

                                       Ninguém dirige aquele que Deus extravia!
                                                                            Raduan Nassar

A tarde passa devagarinho. Vou de novo ao portão, olho inutilmente a rua. Uma felicidade me invade, também vagarosa, sem alardes. Ele demorará ainda, conversando em algum boteco — as benditas partidas de damas na praça. Deito no sofá, saboreando cada segundo de sua ausência. De repente a ânsia, o aperreio de ver a noite chegando. Deslizo pela centésima vez até o jardim, volto para a rede estirada na varanda. Pego o telefone e ligo às amigas, destilo veneno a respeito dele; sua impertinência, o jeito rude ao falar comigo — contrasta com a delicadeza no trato com os estranhos. Recebo apoio, conselhos... quando sinto que já o estão quase odiando, retraio-me: concedo-lhe duas ou três qualidades. Me despeço triste. Preparo o café, lavo com carinho sua xícara preferida — que ele também é metódico, repetitivo: come no mesmo canto da mesa faz séculos, o mesmo pigarreio quando acende o cigarro, os mesmos olhos perdidos na imensidão da janela — maldita indiferença a que estamos destinados na vastidão desta casa vazia. Pego-me cantarolando uma musiquinha antiga, que já foi nossa um dia — quando nossos cheiros ainda agradavam, a pele ficando arrepiada, a outra utilidade da cama. A penumbra toma conta da casa, deixo-me vagar pelos quartos, diviso a porta da cozinha e ganho o quintal: no horizonte a primeira estrelinha. Escuto um ruído, apresso-me na intenção da entrada — mais um alarme falso dentre os muitos desta tarde-noite. Mastigo devagarinho meus rancores, esmago o resto do cigarro na mão. Sento novamente no sofá, ligo a televisão, fecho a porta com raiva; desligo o aparelho — seu ruído não combina com nada neste instante. Finalmente o barulho no portão, o ranger de chaves característico; o arrastar medonho da sandália no carpete — levanto-me de repente, o coração aos pulos. Espero todo o seu ritual de chegada, os movimentos vagarosos. Em seguida entrará na sala, reclamando da escuridão, e permaneceremos em silêncio pela noite adentro. O coração continua aos pulos, a respiração ofegante, tento disfarçar, enquanto o beijo, fecho a porta atrás de mim, retiro a chave e a coloco bem fundo no bolso do vestido.


PEDRO SALGUEIRO* Este conto foi publicado na antologia CONTOS CRUÉIS: as narrativas mais violentas da literatura brasileira (Org. Rinaldo de Fernandes) e faz parte do livro inédito MOVIMENTO ESPERADO, a sair em breve.