sexta-feira, 5 de agosto de 2011



                                                               
                                                       ÂNUA
           
                                           Carlos Nóbrega
           

§. De março a abril
as ruas ficam talhadas de guarda-chuvas,
as mulheres usam cores mais brandas no rosto,
tudo se torna mais pálido,
verifica-se um estio absoluto de borboletas no céu
porém o ar se satura de outras asas
e as pedras amolecem de orvalhos,
enquanto para dentro dos meus olhos
escorrem as águas da nostalgia.

§. Mais que dezembro
fevereiro é feérico
Fevereiro é feérico
porque os olhos estão acesos
    e o mês se unta com o humor das axilas.
E saltam da pele
músculos e calos,
cicatriz e gritos
seios e lágrimas,
todos os sinais de que a carne vive,
e a música dança
ao ritmo dos corpos.

§. Agosto é o mês dos grandes tédios
e das grandes dores,
todas as sombras do mundo
    ganham força em agosto,
e ele rasteja no tempo
    como uma serpente perdida
louca para atravessar o deserto,
E que nos morde,
agosto nos morde
com suas trinta e uma presas de peçonha
    se acaso atravessarmos
suas horas de cabeça baixa.

§. Porém maio é aspergido de progesterona,
os homens estão mais sólidos
porque as mulheres estão de grinalda;
Neste mês fêmeo
    há festejos à deusa cristã,
    as mães choram de felicidade,
e pelos rasgões da cara
onde se alojam os olhos,
e pelos narizes,
e pelos rasgões da carne,
e pelos rasgões da terra,
  aonde põem-se as sementes
o que há de ser flor desabrocha . . .

§. . . . pois eis chegada a safra das andorinhas
e do pontilhado dos milhos
nas micaretas da primavera que há em junho
E esta safra põe uma máscara alegre
na face enrugada da terra
e a face da terra sorri dos rojões e dos foguetes
e das bandeirolas
§§. E os elementos da natureza
embora desiludidos
dançam e cantam de mãos dadas ainda,
Ainda rememoram a inocência perdida
a inocência esmagada
pelo rugir da Máquina.

§. Oh noitezinha de julho
Oh nuvenzinhas da noite
sobrancelhas da lua cheia,
ide buscar minha vida
porque a que eu vivo é alheia.
§§. Há, sim, uma escassez de juventude
nas ruas de julho, e uma escassez de fardas
e um curto declínio da ciência,
Mas os aprendizes da vida
seminus nas praias e piscinas e bares
ficam sorrindo entre si
para que seus corpos e suas almas
completem as férias do mundo.

§. Nascemos em outubro
Eu e os cajus
nesse mês arrependido do calendário.

§. O nome dos dias
a posição do sol e a vontade dos trópicos
o volume dos rios
os humores do Atlântico
o incêndio que portamos do agreste
e o pânico que medra na floresta,
Essas coisas todas se inocularam em nossa vida
como o vírus balsâmico das maravilhas.
Presta atenção:
o aracati e o minuano
são outras peles na tua pele,
E os trovões só se completam
  em teu ouvido.
É natural pois que nossas almas estejam impregnadas de outubro.
Por isso aos domingos nos sentimos um tanto vegetais
enquanto aparentamo-nos com pedras
nas noites quentes,
nas noites fundas esquecidas de amanhecer.

§. Mas há outros tempos no tempo
que não pulsam nos relógios
e nem no pulso dos homens
e é o que mais me pressiona
(não é o tempo dos mortos
e nem aquele dos deuses)
O que mais me impressiona
é o que não aconteceu.

§. Deus me deu escrevesse este poema
e eu o faço
e o dedico aos transeuntes.
Passaram por essas linhas
o que passa em minha vida:
nenhum herói, nenhum semideus.
Às vezes uma brisa,
às vezes um fruto,
às vezes um seio
intumescidos de repente
em setembro,

pois muitas caleças cruzaram
a comédia humana
e quantas naus se perderam
na saga lusitana
e quantos trens se foram
em busca do tempo perdido
e quantos dias percorremos
- e dizemos o nome dos dias
o nome dos meses
o número dos anos
os nossos nomes,
mas tudo é sem termo:
a obra inacabada
a vida inacabada - ,

             E não chegamos,
e nunca chegaremos
pois somos, principalmente, feitos do que virá.


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