Crônica de Pedro Salgueiro para O Povo
Ninguém dirige aquele que Deus extravia!
Raduan Nassar
A tarde passa devagarinho. Vou de novo ao portão, olho inutilmente a rua. Uma felicidade me invade, também vagarosa, sem alardes. Ele demorará ainda, conversando em algum boteco — as benditas partidas de damas na praça. Deito no sofá, saboreando cada segundo de sua ausência. De repente a ânsia, o aperreio de ver a noite chegando. Deslizo pela centésima vez até o jardim, volto para a rede estirada na varanda. Pego o telefone e ligo às amigas, destilo veneno a respeito dele; sua impertinência, o jeito rude ao falar comigo — contrasta com a delicadeza no trato com os estranhos. Recebo apoio, conselhos... quando sinto que já o estão quase odiando, retraio-me: concedo-lhe duas ou três qualidades. Me despeço triste. Preparo o café, lavo com carinho sua xícara preferida — que ele também é metódico, repetitivo: come no mesmo canto da mesa faz séculos, o mesmo pigarreio quando acende o cigarro, os mesmos olhos perdidos na imensidão da janela — maldita indiferença a que estamos destinados na vastidão desta casa vazia. Pego-me cantarolando uma musiquinha antiga, que já foi nossa um dia — quando nossos cheiros ainda agradavam, a pele ficando arrepiada, a outra utilidade da cama. A penumbra toma conta da casa, deixo-me vagar pelos quartos, diviso a porta da cozinha e ganho o quintal: no horizonte a primeira estrelinha. Escuto um ruído, apresso-me na intenção da entrada — mais um alarme falso dentre os muitos desta tarde-noite. Mastigo devagarinho meus rancores, esmago o resto do cigarro na mão. Sento novamente no sofá, ligo a televisão, fecho a porta com raiva; desligo o aparelho — seu ruído não combina com nada neste instante. Finalmente o barulho no portão, o ranger de chaves característico; o arrastar medonho da sandália no carpete — levanto-me de repente, o coração aos pulos. Espero todo o seu ritual de chegada, os movimentos vagarosos. Em seguida entrará na sala, reclamando da escuridão, e permaneceremos em silêncio pela noite adentro. O coração continua aos pulos, a respiração ofegante, tento disfarçar, enquanto o beijo, fecho a porta atrás de mim, retiro a chave e a coloco bem fundo no bolso do vestido.
Raduan Nassar
A tarde passa devagarinho. Vou de novo ao portão, olho inutilmente a rua. Uma felicidade me invade, também vagarosa, sem alardes. Ele demorará ainda, conversando em algum boteco — as benditas partidas de damas na praça. Deito no sofá, saboreando cada segundo de sua ausência. De repente a ânsia, o aperreio de ver a noite chegando. Deslizo pela centésima vez até o jardim, volto para a rede estirada na varanda. Pego o telefone e ligo às amigas, destilo veneno a respeito dele; sua impertinência, o jeito rude ao falar comigo — contrasta com a delicadeza no trato com os estranhos. Recebo apoio, conselhos... quando sinto que já o estão quase odiando, retraio-me: concedo-lhe duas ou três qualidades. Me despeço triste. Preparo o café, lavo com carinho sua xícara preferida — que ele também é metódico, repetitivo: come no mesmo canto da mesa faz séculos, o mesmo pigarreio quando acende o cigarro, os mesmos olhos perdidos na imensidão da janela — maldita indiferença a que estamos destinados na vastidão desta casa vazia. Pego-me cantarolando uma musiquinha antiga, que já foi nossa um dia — quando nossos cheiros ainda agradavam, a pele ficando arrepiada, a outra utilidade da cama. A penumbra toma conta da casa, deixo-me vagar pelos quartos, diviso a porta da cozinha e ganho o quintal: no horizonte a primeira estrelinha. Escuto um ruído, apresso-me na intenção da entrada — mais um alarme falso dentre os muitos desta tarde-noite. Mastigo devagarinho meus rancores, esmago o resto do cigarro na mão. Sento novamente no sofá, ligo a televisão, fecho a porta com raiva; desligo o aparelho — seu ruído não combina com nada neste instante. Finalmente o barulho no portão, o ranger de chaves característico; o arrastar medonho da sandália no carpete — levanto-me de repente, o coração aos pulos. Espero todo o seu ritual de chegada, os movimentos vagarosos. Em seguida entrará na sala, reclamando da escuridão, e permaneceremos em silêncio pela noite adentro. O coração continua aos pulos, a respiração ofegante, tento disfarçar, enquanto o beijo, fecho a porta atrás de mim, retiro a chave e a coloco bem fundo no bolso do vestido.
PEDRO SALGUEIRO* Este conto foi publicado na antologia CONTOS CRUÉIS: as narrativas mais violentas da literatura brasileira (Org. Rinaldo de Fernandes) e faz parte do livro inédito MOVIMENTO ESPERADO, a sair em breve.
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