segunda-feira, 1 de agosto de 2011

       Quando o Amor é de Graça III: crônicas de meu Pai
Raymundo Netto especial para O POVO


                               José Pedro Alves da Costa, o Deca

Todos têm — e aí o “quase” é certo — o melhor pai do mundo. Daí, de não tomar tempo alheio a endossar o clichê. Meu pai, José Pedro, pelos amigos o “Deca”, para os colegas o “Costa”, é pernambucano. Sargento do Exército — imitando o pai, cabo mestre-carpinteiro Raymundo —, veio a Fortaleza com 25 anos, onde morou no sobrado da tia Francisquinha, na Padre Mororó. Depois, num baile do extinto clube General Sampaio, conheceu Zenaide, a “Zena”, estudante de odontologia — pioneira entre as mulheres no curso da UFC —, minha não-sabia-ainda mãe.
Em calções, “descobriu” que os filhos gostavam sempre mais das mães, então decidiu ele, na certeza franca de menino, que amaria mais a seu pai. E assim foi.
Conta que o vovô era durão e quando dava a bater em um filho, coisa rara, aproveitava e batia em quem estivesse perto — eram 8 os  irmãos — e tivesse lá o seu saldo de palmatória. Já sargento, homem feito, um dia chegou em casa num momento desses e, seu pai, vendo-lhe à porta, disse: “Venha, você, que também não é flor que se cheire!”. Estranhou, mas com devido respeito filial, ainda pediu: “Papai, deixa só eu tirar a farda porque apanhar de farda...”
Meu pai fora de sempre conhecido pelo bom humor, pelas tiradas espirituosas e inteligentes, pela visão leve de vida, pelo cuidado gratuito com as pessoas e pela generosidade com os que estavam à sua volta e dele precisavam. Sem exagero, “pai de todos”, nunca o vi reclamar de nada ou praguejar de coisa alguma, ao contrário, muito prático e sem tempo para queixumes, resolvia tudo numa facilidade que chegava a nos dar, ingênuos por natureza, a impressão de que qualquer coisa no mundo seria possível. Contudo, ainda lembro-me do dia em que levou minha vitrola, presente de Natal, para consertar — veio da loja defeituosa — e a roubaram de seu carro, provavelmente por descuido seu. Chegou em casa, aflito. Eu, a perguntar pela vitrola, e ele, sem me responder, botando a casa abaixo em busca de dinheiro para comprar outra. Minha mãe, guardiã de seu ordenado, entregue inteiro e religiosamente todos os meses, sabendo do ocorrido, o revelou sem vexames para mim e, diante do olhar encabulado de meu pai, assim só o vi desta vez, sentenciou: “Deixa para lá, Deca, ele não devia merecer. Depois compra-se outra.”  O que ela fez, sim, anos tarde demais.
Éramos seis crianças, tinha ele uma Kombi. Por isso, dava-se a oferecer carona a todos, e estes se sentiam à vontade de convidar outros, e assim por diante — chegou a dar segunda viagem para “cumprir a lotação”. Em época de pouca legislação, a Kombi saía ruidosa, portas abertas, com panelas, gaiolas e até com bicicleta dentro, distribuindo gente e gargalhadas pela cidade.
Assim também era, de caber todo mundo, a nossa casa: “ovelhas negras” de família, mulher que apanhava de marido, filho que dava trabalho, parente “em trânsito”, gente doente, candidatos a suicidas, empregadas gestantes — chegamos a ter três de uma só vez —, mãe solteira ou rico que ficou pobre, todos acabavam no endereço da Benjamim Barroso. Era quase uma pensão. Até dia desses, mamãe, pessoalmente, fazia o prato, escolhendo a melhor comida para dar aos esfomeados da calçada. Assim como, até há pouco tempo, e isso me faz falta, todos os domingos, seu Costa, olhando para cadeira vazia, dava a tamborilar os dedos na mesa larga da cozinha, feita sobre medida para família grande, e cantava trechinho de música preferida: “Naquela mesa ele juntava gente e contava contente o que fez de manhã/E nos seus olhos era tanto brilho/Que mais que seu filho/Eu fiquei seu fã.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário