segunda-feira, 1 de agosto de 2011





Letras, Literatura e livros:
a trajetória de Bernivaldo Carneiro
Prof. José Alglaílson Lopes Pinto
MS em Literatura brasileira e internacional


Existem autores que, à primeira vista, parecem-nos um pouco acuados, mas gradativamente vão se soltando, e o texto nos salta aos olhos como que um felino sobre a presa. Espreitam daqui, espiam dali, investem acolá, enfim, tecem o seu texto conforme ajuntam matéria necessária ao trabalho a que se destinam. São curiosos por natureza, porém não espalham a notícia, logo que tomam conhecimento desta. Procuram e esperam o suficiente até se certificarem do que têm a realizar, isto é, até que estejam devidamente seguros da empreitada. Assim é Bernivaldo Carneiro, cearense de Jaguaretama, e um especialista em engenharia sanitária, o que é um bom motivo para manter a mente ocupada e asseada. Cauteloso, colhe do seu dia-a-dia, em casa ou no trabalho, assuntos que lhe rendem uma boa e descontraída prosa. O seu texto é tão fluente que mais parece uma conversa, ainda que recorra a digressões, vertente tão comum a autores de teor psicológico. O leitor não só o lê, mas também se engaja na conversa ou trama construída sem apelos.

Em seu primeiro trabalho, Fofocas, Futricas e Folclore, Bernivaldo já nos apresenta uma marca inerente a suas produções posteriores, a observação aguda e certeira de um narrador nada isento do meio em que se encontram personagens caricatos. Este autor prefere, pois, observar histórias a fatos, uma vez que os fatos, conforme se observa em seus escritos, são meros expedientes. O leitor atento pode até indagar: Mas a história não se baseia nos fatos? Neste autor não é bem assim que se processa. Os fatos existem, no entanto o narrador se interessa mais pelo intratexto, ou seja, se interessa pelo texto dentro do texto, que são as histórias que os personagens, colhidos do cotidiano, propiciam. Isso nos dá uma certa intranquilidade, porque os personagens, como já afirmamos anteriormente,são caricaturas, no entanto não pendem para o ridículo. As histórias deles interessam mais do que propriamente os fatos vivenciados. Para sermos mais sucintos, podemos afirmar que se trata de um filtro onde o mais interessante é a cristalização da história enquanto história de vida, não o fato momentâneo. Talvez seja uma questão de estilo bem ilustrado por Severino Cícero, topônimo que lembra o Sertão nordestino e a Roma antiga.

A narrativa de Bernivaldo Carneiro apresenta o seu ponto alto no desfecho, daí a proximidade com a crônica narrativa contemporânea. Ao leitor mais atento, é um recurso que causa descontração. É uma característica em comum aos demais textos deste autor. O arrastar das palavras é suave, desliza feito serpente, que captura o leitor nos instante final. O leitor segue esse ritmo como que hipnotizado para se deliciar num riso enviesado e inevitável. Outra marca deste autor é fixar o elemento personagem como núcleo, conforme passagem que se segue:
O esforço, a determinação, a ideia fixa de vir a ser gente – no dizer dos pais – sempre garantiram a Severino Cícero um lugar de destaque por onde passara. Enquanto estudante, quando não se colocava destacadamente como o primeiro aluno das turmas dos estabelecimentos de ensino que frequentara, no mínimo, se posicionava entre os três que se sobressaíam. Achavam-no inteligente, ele, porém, para compensar a ausência de um bom percentual de neurônios a mais, que sempre lamentou não possuir, fora pura dedicação aos livros. O empenho e amor aos estudos, o exemplar comportamento intra e extra-sala de aula, a obediência aos mestres – sem contudo lhes ser subserviente – foram uma constante em toda vida estudantil do primo preferido de Zumira. Seu modo de viver, sua conduta, tornavam-no respeitado e admirado, não somente pelos colegas de estudo, mas também por quantos com que ele convivesse. Na unânime opinião de professores, diretores e funcionários das casas de ensino – todas públicas, do Grupo Escolar às Universidades que o acolheram era um exemplo a ser seguido. Orgulhoso de si, ele concluíra que a descrita trajetória fora decisiva para – sem maiores problemas e principalmente sem a interveniência de pistolão – ter conseguido o emprego, no qual estava há dezessete anos. (Carneiro, 1998: pp. 19 – 20)

Nota-se, nesta passagem, uma sutil ironia, a cada exposição, um corte irreverente. O frisar o modelo a ser seguido, a ênfase dada à educação estatal e a isenção política são posicionamentos que corroboram e personificam os segmentos do texto de Bernivaldo. Essa característica se estende por muitas páginas. Só assim o texto se desloca para o centro, que são os personagens. Esses não têm hierarquia, todos são cúmplices entre si e fazem parte de um mesmo processo que encontra o ponto alto no final da narrativa. No entanto, depois de tantas volutas, é claro que o texto pode perder força, no momento em que expedientes mais do que secundários entram sem afetar a narrativa, isso poderia desqualificar o texto, porém trata-se apenas de uma condução expletiva, como os nomes atribuídos a cenários e a alguns personagens desprovidos de existência na fabulação, algo que poderia ser evitado.

O esperto e astucioso Mimi conhecia a fundo os irmãos. Assim sendo, logo lhe saltara aos olhos o secreto desejo de Hemetério Neto – o decano do clã Silvestre Carrasco – de voltar ao comando dos destinos de Bumbunlândia. Fazia-se necessário bolar uma boa estratégia política para desbancar o irmão – cuja oportunidade de se locupletar na Prefeitura aproveitara com esmerada eficácia, com injustificável apetite. (Carneiro, 1998: p. 86)

Mas isso o próprio autor explica. Ele diz que “tudo não passa de uma mera identificação regional, haja vista os nomes concebidos e concedidos a levas de nordestinos.” Não explicou, porém, o nome do local que, em nosso entendimento, merecia um nome bem menos caricato.

Se em Fofocas, Futricas e Folclore o autor começou a esboçar o seu pragmático intento literário, em Satirizando o Cotidiano, Bernivaldo Carneiro define a sua forma narrativa, fixa a crônica, o relato do dia-a-dia expondo pessoas simples ou públicas de forma irônica. Nesta obra os personagens ditam a norma, consolidando, desta feita, algo que já se faz presente no livro anterior. São tipos populares que trafegam pela cidade cosmopolita, bem como pelo sertão mais profundo. São urbanos e interioranos, são citadinos e sertanejos, matéria muito bem conhecida por Carneiro.

Bernivaldo inicia o seu segundo trabalho, prefaciando o primeiro texto, O Caseiro Hipocondríaco. Observa-se a participação do autor pedindo desculpas, conforme se mostra no seguinte trecho:
Não lhe cobro conhecimento do transtorno que a doença da guardiã do Sítio Casa do Duda causou à família Severo Aleluia (o tema desta crônica), posto que isto eu não discorri em meu Fofocas, Futricas e Folclore. É fato que estou lhe devendo. Aliás estava, pois como é de minha índole assumir meus erros, honrar meus compromissos, quero aqui me penitenciar. (Carneiro, 1999: p. 17)

Neste pedido nota-se que a qualquer momento um novo deslize poderá ocorrer, uma vez que é de praxe no texto de Bernivaldo Carneiro a interveniência do narrador e, por vezes, também do próprio autor. Mas o pedido de desculpas certifica o leitor de sua importância para o texto, justificando uma característica de Carneiro que já se percebia no primeiro livro.

Transcorrem os textos em Satirizando o Cotidiano como se estes fossem uma corrente, um elo que liga o primeiro ao último sem cortes. É uma forma de prender o leitor, pois podem ser lidos aleatoriamente, ou seja, sem ordem preestabelecida. É uma corrente bem cristalina, sem obscurantismos. Bernivaldo Carneiro repassa ao leitor uma intensa segurança. Cava o seu tema como se estivesse sedento para dar prazer ao leitor “enquanto a sorte grande não chega”, e assim fosse concebido Juninho. E Juninho é o dono do livro, ele é o livro todo.

Depois de alguns ensaios em Fofocas, Futricas e Folclore, finalmente Bernivaldo Carneiro tomou o “rabo-de-galo” de que precisava para conceber um estilo bem definido. A linguagem mais enxuta, o texto mais literário, portanto a sobriedade do seu estilo torna o texto esteticamente mais requintado, não no sentido linguístico, mas no termo literário. As palavras jorram e se esparramam no papel. A competência do engenheiro sanitarista – que o é – agora se centra no escritor de estilo próprio. As palavras no texto tomam o mesmo itinerário do cronista, atravessam fronteiras, partem do regional e se fundem universalmente.

No livro Nas Garras de um Irreverente, em nossa concepção, o mais bem trabalhado do autor, o escritor supera ao hidrogeólogo, visto que a literatura tomou conta de sua índole, fazendo, assim, um caminho inverso ao que geralmente se estabelece na vida artística. Bernivaldo não sai do concreto ao abstrato, mas, sim, do abstrato ao concreto, uma realidade inversa com que aos poucos o leitor se familiariza. O seu caminho não atravessa intempestividades, mas, gradativamente, se avulta como um regato atrás de uma ribanceira. E suas palavras são precisas, para instigar e desafiar o leitor à leitura de um texto feito com esmero e muito empenho. Empenho de quem entende do que escreve e para que escreve.

“Sem mais para o momento, espero que se deliciem com esta singela obra, posto que a gestei com muito empenho e dedicação.” (Carneiro, 2000: p. 14)

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