sexta-feira, 29 de outubro de 2010

E o Palhaço o que é?... É Deputado Federal!

                                               Charge de Kaiser                                    
Caberia como piada, se fosse, tratando-se de quem vem, todavia é a mais aperta e embaraçosa verdade: o candidato a deputado federal mais votado no Brasil, mas muito, muuuito mais votado, é um palhaço, o cearense que assina (ou não) como “Tiririca”. Fosse ele um benemérito, um artista militante da cultura ou atuante em questões sociais, vá lá... Mas não, não o é. Cumpre apenas a moda de ser mais um famoso em busca do reconhecimento fácil das urnas, pois que no “picadeiro”, às vezes, dilui-se na rivalidade agressiva de estrelas (de)cadentes. O Francisco Everardo Oliveira, noutro caso, certamente não teria tantos votos assim.
Julieta ‘tava lhe chamando, mas quem o elegeu foi o colégio (se diz “colégio” por que ainda estão aprendendo?) eleitoral de São Paulo, que, se mostrou mais “moleque” que o Ceará. O que esperar de um estado que elege um Maluf, cuja tal ficha há muito atolou-se em lama, mas que talvez pense (?) como o “lindo”: “pior que tá não fica!” Enganam-se, pois sabemos que há sim espaço para o pior num país que sempre açoitou no lombo desprivilegiado a concentração de renda imoral e a etiqueta da discriminação social.
Acredito que a eleição do abestado Tiririca, deve-se a vários fatores, dentre eles, a ditadura do voto. Como se pode afirmar que votar é um ato de cidadania, quando se é obrigado a fazer isso? Sem liberdade, não há cidadania! Já pensou se votassem apenas os eleitores conscientes e comprometidos?
Por ora, sem preciso indulto, arrastam-se milhões de “votadores”, arremedos de “eleitores”, pelos corredores das zonas eleitorais, PERIGOSOS e resmungosos analfabetos políticos (que nem precisam provar se sabem ou não ler ou escrever para estarem ali), para cumprir com ódio sabe-se-lá-de-quem (mas que é do governo, certamente) a auto-sabotagem corrosiva de seu voto que, não sabe ele, aliás, ele não sabe de nada, pode cair como um tsunami na sua-cabeça-de-todos, mas, por certo, olvidado, o inocente deverá um dia culpar a Deus, ou ao Demônio, pois quem sabe onde começa um ou o outro?... “O que é que faz um deputado federal? Na realidade eu não sei, mas depois eu te conto...”
E justamente por não sabermos sobre um monte de coisas, entendemos que as pessoas podem — e a boa democracia deve isso garantir — discordar, ter opiniões diferentes, ter crenças que a levem a tecer as mais diversas considerações sobre o mundo e todas as coisas, e nisso reside a beleza da humanidade e a riqueza de nossa cultura. Mas o voto de “protesto”, quando irresponsável, é incompreensível. Quando por “protesto” se votavam em jumentos, elefantes e bodes (como o nosso Yoyô), soava mais civilizado, pois as animálias não eram obrigadas a representar a tão débeis eleitores que, de certa forma, acabavam por se identificar com o eleito, como no caso, o Tiririca.
Ademais, a coisa toda é tão maluca que o próprio Tribunal Eleitoral incentiva: “não esqueçam a cola!”, “levem a cola!”, jogando pela latrina o trabalho de anos de conscientização de nossas “tias” do colégio que nos orientavam a nunca colar...
Claro que nesse momento alguns leitores — apenas uns poucos futuros ex-leitores, espero —, estejam com suas compridas orelhas em pé, escandalizados com meu palavreado tão pouco literário a me apontar, com o indicador sujo, o autoritarismo, a palhaçofobia, o fascismo, o preconceito e outras coisinhas mais que os caluniadores de plantão se não o encontram, criam. Quando os tais caluniadores são escritores, às vezes o fazem com certa graça, pelo menos.
E é com calúnias, meus amigos, que hoje se tempera as mais desesperadas e pobres — ao mesmo tempo milionárias — campanhas eleitorais de todos os tempos. Como seria maravilhoso crer que tanto dinheiro, energia e empenho são empregados pela legítima gana de servir ao povo brasileiro. Ah, se nos fosse permitido crer em contos de fadas...
E por falar em histórias infantis, esta semana, por exemplo, assisti à do candidato tucano (ave que tem, por hábito, pilhar o ninho de outras aves) ao representar, à Gianecchini, uma tragédia deflagrada por suposta agressão de uma “bolinha de papel”. O homem, só passado muito tempo da “colisão”, despertou, colocou as mãos na careca de vidro e, não fosse ele tão arrogante e do BEM (bem cuidado, diga-se de passagem), tomou um helicóptero, dirigiu-se ao hospital, fez uma tomografia (dizem que fez, mas...) e teve até direito a uma confusa explicação de um médico que com as mãos na cabeça dizia como examinara a cabeçorra do paciente, alvo fácil para agressões aéreas. Fico a pensar que tal “estratégia” mirabolante tenha sido urdida — e comemorada a risos — na mente febril de um de seus assessores, pois não creio que um José tão esperto consiga ser tão inábil ator. Para falar a verdade, há tempos, os tais profissionais “assessores”, bacharéis do puxa-saquismo sacramentado, conseguiram acabar com a honestidade, que já não era tão esbanjada, na política.
Não bastasse a “limpeza” exagerada das fotos dos candidatos, por modernos programas de computador, a fim de enfeitar os outdoors com ridículas caras de “Barbie”, os assessores, esses desconhecidos que enricam em eleições, oferecem ao cliente, em troca de vultosas quantias a pagar sabe-se lá com que moeda, fórmulas e estratagemas de garantida vitória e de aceitação de um povo massacrado educacional, econômico e culturalmente. E vendem de tudo: o discurso, o segredo do sorriso (notem que os candidatos falam mal um do outro sem tirar o sorriso e os olhos duros da cara — “olhem no olho do eleitor, não desviem o olhar, não expressem raiva” —, além de insistir sempre: “estamos fazendo uma campanha de nível”, “estamos aqui para falar de projetos”, “vou registrar meu Programa em cartório”), as roupas (para a escolha de suas cores têm estudos fantasiosos que assustariam criancinhas), jingles em ritmos bem populares (leia-se “música chula”) e até os gestos dos candidatos são analisados, reprogramados e transformados em repetidas idiossincrasias eleitorais (trejeitos ao encontrar com os mais simples populares, a leitura da bíblia e a oração com a família sempre linda e feliz, o beijo amoroso na cabeça daquela criancinha que o fotógrafo arrancou da mãezinha...), tudo isso vem em pacote elaborado por qualificados parasitas — têm “expertise” (espertice?), dizem —, um trabalho como qualquer outro é verdade, digno de um pouco de ética e consciência, se sobrar tempo, é claro.
Da mesma forma, a imprensa deu asas a um pseudo-fenômeno de “marinização”, que nada mais foi que o resultado da insatisfação de eleitores com as candidaturas que a antecediam em votos. Ou seja, um voto de “protesto”, para quem não o queria anular. O único mérito da Marina era não estar entre os dois primeiros lugares. E, penso, sorte dela, e de todos nós, não ser a eleita. O seu partido estou Pra Ver igual: partiu verdinho em bandas! E o Gabeira, então? O que é isso, companheiro? Endoidou?
Assim, domingo, já sei: veremos novamente as filas de “votadores” doidos para curtir uma praia, a olhar para o pelotão de fuzilamento diante da maldita cabine de votação. Nela, paciente, votarei no projeto socioeconômico que mudou a cara do Brasil e deu a ele solidez. Lembrarei dos tempos “bicudos” (tucanos, podemos dizer) quando não podia passar um cometa no céu que o Brasil quebrava, se vendia, pedia dinheiro emprestado ao gordo FMI. Hoje, não. Mesmo diante de crises mundiais, mantivemo-nos em pé, sem nos vender em nada, sem dever, ao contrário, emprestando ao tal Fundo. Diferente é assistir ao seu país ser recebido internacionalmente como investidor e não mais como devedor como o era, na famigerada era de FHC e Serra.
José S... ERRA, até no nome, se pensa que somos, no mau sentido, palhaços, afinal, o palhaço o que éééé? É ladrão... ops!, é Deputado Federal.
Perdoem-me a franqueza. Espero que não me fiquem de mal por conta dessa bobagem toda, senão, juro, “eu vou morrêêêê...”
Raymundo Netto que vai votar novamente num 13, com menos barba desta vez. Contato:raymundo.netto@uol.com.br    
Blogue:http://raymundo-netto.blogspot.com


Revivescência
Brennand de Sousa 

Nelson Rodrigues, maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos, notabilizou-se enormemente pelo caráter polêmico de suas colocações. Reacionário, genial, depravado, companheiro, oportunista... autor profundamente controverso,  laureado e odiado em igual proporção.

 Se “A Voz do povo é a voz de Deus” tornou-se a mais conhecida e infeliz pérola do rei Pelé, o “Toda unanimidade é burra”, veio a ser, se não o mais famoso, pelo menos o mais feliz aforismo do grande dramaturgo pernambucano. Nelson sempre soube exatamente o que dizia. Qualquer que seja a situação em que se configure, a unanimidade marcará sempre uma condição de desequilíbrio de onde quase sempre brotam as posturas totalitárias.

O primeiro turno desta eleição presidencial foi unanimemente marcado pela apatia do eleitorado petista. Apatia dos setores pensantes, apatia da classe média, apatia até mesmo de amplas camadas populares. Capitalizando essa apatia geral, Marina Silva conseguiu mobilizar muitos votos entre o idealismo cansado e desconsolado. Alguns atenderam quase de imediato aos apelos virginais da candidata. Posteriormente, as picuinhas partidárias entre Serra e Dilma só avolumaram o pleito pela senadora do PV.

Desde o final do primeiro governo Lula, este autor, que ora vos escreve, vinha refletindo sobre o pragmatismo gestor do PT. Afirmava em alguns artigos que a conquista do poder havia desvirginado nossas pudicas concepções ideológicas, que a experiência petista de governar seria um divisor de águas para futuras formas de se fazer campanha política,  que a famosa militância ideológica havia acabado, como inclusive foi tristemente constatado neste primeiro turno.  A certeza da vitória no primeiro turno, o crescimento amparado de Dilma, a campanha petista prosseguindo a toque de caixa...  Tudo nos levando a crer que as coisas transcorreriam modorrentamente dentro do esperado. Todas as cores da antiga paixão, reitero, estavam desbotadas pelo nosso status quo adquirido. Campanha endinheirada, militância paga... Para que ir as ruas? 

Com o advento do segundo turno as coisas mudaram significativamente. Por ironia do destino, o fortalecimento do PSDB acabou por ressuscitar entre as fileiras petistas o gosto pela disputa renhida que forjara nossa militância ao longo destes 30 anos. A perspectiva, ou antes, o pavor de uma retrospectiva psdbista, voltou a mobilizar mentes e corações em todos os extratos sócio-econômicos de nossa população. A central de boatos na internet que abalara profundamente a candidatura de Dilma no primeiro turno, agora é invadida por enxurradas de emeios anti-Serra, numa clara reação de que estávamos realmente mal-acostumados às conquistas do governo Lula.

Neste ínterim de oito anos, enquanto muitos de nós estávamos situados numa espécie de limbo ideológico – os xiitas migrando para partidos mais à esquerda – o governo petista estava promovendo a distribuição de renda, multiplicando as ofertas de emprego, abrangendo o acesso à educação de nível superior, aumentando a respeitabilidade internacional e soberania do país, recuperando as universidades públicas, fortalecendo a economia (boa parte dos países do 1º mundo ainda estão atolados na crise), aumentando o nosso poder de consumo, pagando a dívida externa ( agora somos credores), etc, etc, etc,  e etc ad infinitum, ou seja, cumpria grande parte das metas a que se propusera.

O inchaço repentino do PSDB, promoveu em nós uma espécie de solavanco político. Nos demos conta de que todos os ganhos sociais e econômicos do atual governo poderiam (podem) ser simplesmente escoados pelo ralo. Despertamos, provavelmente, para a uma maturidade política que respeita a dialogicidade. Talvez tenhamos chegado finalmente a uma compreensão de que governar é, antes de tudo, governar diferenças.

Para finalizar, retornamos a Nelson Rodrigues para reafirmá-lo e ao mesmo tempo contrapô-lo: Nesse momento de ameaça ao projeto petista, nós, seus fiéis construtores, não precisamos da unanimidade dos votos brasileiros. Nesta altura do campeonato, quinze pontos percentuais à frente já trariam imenso alívio à toooooooooda nação.

Crônica publicada no jornal Agora, de Iguatu.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

               


“Lançamento do livro V: A ‘Se Achademia' de Letras"
Raymundo Netto

“Se achar”, termo em vulgar em toda a cercania, parece reunir um grande mal de alguns de nossos escritores. Sabido é que a vaidade ao mesmo tempo que cega, envenena e contagia, por outro lado, para alguns, tem efeito contrário, provocando constante busca (entenda-se leitura) e aprimoramento na sua práxis criativa.

Às vezes, é tanta a arrogância, e em cordões os arrogantes, que chegamos a duvidar haver no Ceará espaço para tanta barriga, mesmo quando esta é disfarçada no pano passado, apertadinha no cinto abaixo dos peitos. Completamente despidas, dentro dessas barrigas, majestosas majestades se coçam a cavaquear com o “ser achante” sobre as suas qualidades, virtudes e originalidade de seu talento. Alguns, reparem, têm o hábito de falar, “aparentemente”, sozinhos.

Pena que por preguiça, pouca disponibilidade de tempo ou talvez pela simples e indisfarçável inabilidade para a coisa, o incauto acaba por se achar completo, em sua melhor forma, o que não podemos dizer de sua produção, quando esta nos é revelada, e se o é...

Uma vez, numa das crônicas anteriormente publicadas, escrevi que “quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!” Nada mais verdadeiro se tratando desse mundo tão incompreensível (diverso?) que é a literatura. Ademais, acredito: “são tantas as literaturas cearenses”...

Logo acontece o previsível: a tal criatura além de “se achar” sozinha, ainda se acha noutros que, por também se acharem, engrossam as fileiras das pretensas erudições e decidem, julgando-se (ou achando-se) vanguardistas, criar mais um silogeu, sodalício, sociedade ou academia, no caso a “Se Achademia de Letras”.
Alguns, infelizmente, reconheço haver exceções, precisam de um medalhão para garantirem o que no papel não o conseguem.

Mas, medalhão nos peitos, e imortalidade cucuricando-lhe à cabeça, nada mais os segura. Entre loas, panegíricos e discursos laudatórios, assumem suas cadeiras, elegem seus patronos, e montam a sua “ilha”. Digo “ilha”, pois fora dela toda a vaga literatura circundante passa a não mais existir. Nem por meio de mensagens de garrafas ou sinais simbolísticos de fumaça. Nada. Só “nós” e o estimado dicionário enteiado por verbetes do século XIX e epígrafes em latim.
Para falar a verdade, existem palavras que não fazem falta no dia-a-dia. Uma delas é panegírico. Prestando bem atenção, percebe-se que soa até mal, rima com jerico — o que não cabe aos que têm inclinação às coisas do espírito — e parece nome de remédio ruim, não? Tal engenho, fadado ao fracasso, deveria ser esquecido e condenado à fogueira do desuso, o que nos prestaria um serviço intemporal.

E no texto? Chorrilhos de sonetos de pés já engessados e versos livres, mas tão livres que se vão e não ficam, não ficam nunca... Tem também o se achadêmico “ficha limpa”, aquele que embora integre tal entidade, nunca escreveu nada.
Outros elegem o discurso. Adoram discursar. Verdadeiros torturadores da boa fé alheia, não medem palavras, ou melhor, as catam — à lupa e pinça — em dicionários, e se extasiam ao encontrar as mais extravagantes: “Ah, quero é ver se alguém sabe o que é isso...”

O ser gente é sempre uma cacimba de mistérios. Vamos lá:
Um dia, estava eu numa dessas agremiações, convidado a falar como desconhecido à “ilha”, quando dirigiram-se a mim três dedinhos de senhora muito elegante que delicadamente apanhei ainda no ar. Apresentou-se: “Sou membro da Academia X, da Associação Y, colaboradora da entidade Z e blá-blá-blá... — Ficamos com as mãos num lequeado inútil, quando rompi o breve silêncio com um inevitável: “Mas qual o seu nome mesmo, senhora?”

Outra história: um casual encontro que tive com um “se achadêmico”.

Anos antes, havia recebido um livro dele por intermédio de um amigo que desconfiara sê-lo de meu gosto pelo caráter memorialista. Na verdade, era um livro graficamente feio, de escritura rala, mas por se tratar de presente, guardei-o. Não sei como — tenho a memória ainda mais rala —, mas ao encontrar aquele sujeito, consegui lembrar-lhe o nome. Para quê? O homem inflou os peitos, cerrou o cenho, coçou a barriga (atiçou o rei nu) e perguntou o meu nome. Respondi-lhe. Ele divisou o horizonte e balançou negativamente a cabeça, confirmando a minha desprezível existência. “Muito prazer, então”, falei. Mas o homem ficou nas nuvens e pôs-se a achar que eu tinha tempo para ouvir-lhe a fastidiosa história literária. Formado em Letras, mantinha um jornalzinho — o mais lido em seu bairro —, escreveu tantos livros, e mais tinha a publicar nas gavetas, escrevia para um grande jornal (no caderno reservado ao leitor...) e, não me impressionei, fazia parte da Academia Fulana, União Sicrana, Sociedade Beltrana e por aí vai.

Enquanto ele falava, eu pensava “na minha ingenuidade, havia cometido um grave erro: reconhecera o escritor cearense! Droga! Este, reconhecido, é inatingível, inalcançável, imanente e imaneta!”

Outro caso: um escritor — para piorar esse era poeta —, empacotador de supermercado, muito simpático, contou-me que havia mandado fazer nas laterais das pernas de suas calças, bolsos imensos onde guardava seus livros, estes, financiados por personalidades conhecidas da nossa boa sociedade. Assim, ao colocar os pacotes dos clientes no bagageiro do carro, aplicava-lhes o golpe: sacava mais um livro de poemas das calças (tinha vários títulos). Nesse momento sorriu e disse-me que sua obra era um best-seller (ou um Peter Sellers, não lembro bem), e que havia sabido, na semana passada, que seu nome concorria ao Nobel. Não acredita? Tome!

Conheço entidade acolhedora de esperançosos escritores — esperançosos porquanto ainda não conseguiram escrever — que não sei se pela pouca habilidade criativa, ou pela crença verdadeira de que não temos memória mesmo, opta por copiar o nome de agremiação do passado, não se conformando em também copiar-lhe, aos berros, os seus versos, os títulos de periódicos, os seus rituais e outras coisas mais. Podemos chamá-la de “Academimeógrafo” ou “Literatura de Regressão”, para acompanhar a moda espírita...

Tem também a história triste de um “se achadêmico” que lamentava não poder concorrer a prêmio literário porque não poderia correr o risco de perder por se tratar, segundo ele, de “um nome”. E de outro que conta o tanto que fez “pelo Ceará” e que sofre boicotes de todos, mas apenas dos que não o leem e ainda não descobriram o quanto ele é único... Mas se acha...

Discutindo sobre isso com um conhecido, antes de confessá-la em crônica, ele aborreceu-se e afirmou que falar mal de intelectual é coisa de intelectual. Disse-me que eu “me achava”... Pode ser, tais germes do “se achismo” nos espreitam silenciosos até tomar-nos toda a chaguenta alma. Então, imbuído de um pouco da humildade que me resta e cônscio de minha ignorância, recolhi-me ao silêncio da Casa Verde, em despedida ao mundo visível.

Para mim, rogo, desocupado ledor, a sua compaixão; à “Se Achademia”, as batatas!

Raymundo Netto. Interno da Casa Verde, sucursal Ceará, cujo diretor é o Bacamairton Monte.
Contato:raymundo.netto@uol.com.br/ blogue AlmanaCULTURA:
http://raymundo-netto.blogspot.com.br

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Multiforme
Silas Falcão

Deus é cera
                                                                                                            
Labirinto
Silas Falcão

                      O destino gosta de inventar desenhos e figuras
                                                                  Rainer Maria Rilke

Sempre os clichês tristeza e solidão.
Olha-se dentro e vislumbra um vazio profundo e escuro.
Sob aguda nostalgia lamenta sorrisos, abraços de um passado enrugado.
Relançando amargos olhares na casa – incompreensível casa sem colméia humana – murmura a família devorada pela morte insaciável.
Consultando a idade da noite – horrível sombra – reolha o velho relógio na parede, que anunciava festas antepassadas.
Do fundo do tempo vêm as saudades da outra humanidade.


                                                                                                                                                         
Complexo e imperfeito
Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.


Dias atrás assisti ao filme “Reflexos da Inocência”, do diretor britânico Baillie Walsh. Surpreendeu-me o trecho em que uma menininha, sentindo-se injustiçada em casa, pergunta ao jovem Joe Scot (Daniel Craig): “Quantos dias Deus levou para fazer o Mundo?”. Joe respondeu conforme a letra do Livro: “Em seis dias. No sétimo descansou.” A criança, então, blasfemou: “Se Ele fosse menos apressado, teria errado menos. Eu mesma faria melhor!…”

De fato, assim é o mundo: complexo, imperfeito e, provavelmente, incognoscível em seus fundamentos. Quanto a Deus, creio que somente o fato de existir algo em vez de nada ainda O sustenta como hipótese logicamente válida: seria o Deus razão-de-ser de Leibniz ou, consoante os Upanixades (seções conclusivas e filosóficas dos Vedas), “a base de todo o ser; (…) a realidade última que possibilita o tempo, o espaço e a ordem natural.”

Ocorre que tal divindade não dá sinal de qualquer benevolência, preocupação com nosso bem-estar ou atenção às orações dos crentes. Comporta-se tal como a Vênus colossal de Baudelaire: enquanto nós, bufões aos seus pés, imploramos atenção, ela, “a implacável, olha para longe, vagamente, com os seus olhos de mármore”.

Por isso que – sustentam os deístas – se Ele ainda atua em Sua criação, o faz de forma indireta, através das leis naturais.

Mas… e como operam essas leis? O biólogo François Jacob, referindo-se especificamente às da evolução (seleção natural, mutação e deriva genética), afirmou que seu modo de operação nem de longe lembra a atividade inteligente de um engenheiro. Na verdade, sua astúcia e imprevidência é algo típico de um “engenhocadeiro” que, sempre que surge um problema, resolve-o com improvisações e meias-solas. Por isso que os organismos vivos, em boa parte dos casos, consistem em geringonças cheias de gambiarras e à beira de um curto-circuito. (É o que explica, em parte, o número enorme de espécies já ext intas, muito além do razoável.)
O mesmo vale para o mundo dos homens, a começar por seu sistema cérebro-mente: a estrutura mais complexa de que se tem conhecimento, talvez mais complicada que o sistema matéria-gravitação (universo) que lhe deu origem. Não é necessário gastar muito verbo para demonstrar quão precário é o nosso artefato de sentir e pensar. Para tanto, basta lembrar o seguinte: a) Os paleontólogos calculam em milhões de anos a média de vida das espécies de vertebrados fósseis; b) O “Homo sapiens” moderno é uma espécie infantil: conta com apenas 200 mil anos de idade, aproximadamente; c) Não obstante isso, devido à nossa inteligência “irracional” – característica equivalente à “burrice” de certos vírus, que destroem seus hospedeiros e, consequentem ente, a si mesmos – já criamos as condições para o nosso extermínio prematuro: mudanças climáticas antropogênicas que apontam para catástrofes iminentes; um arsenal bélico capaz de destruir a vida na Terra não uma ou duas, mas dezenas de vezes. — Destarte, só com muita sorte sobreviveremos por mais mil anos.

Há, no entanto, algo inusitado no complicadíssimo espírito humano: o fato de que, embora imperfeito, anela a perfeição, razão pela qual, como indica a tristeza da menininha da película inglesa, sentimo-nos desconfortáveis dentro deste universo, pequeno demais para acomodar nossa imaginação matemática e poética. (Sim, Drummond, você tem razão: o mundo é vasto, porém mais vasto é o coração.)

Para concluir, volto à questão da existência de Deus, só para dizer que, como agnóstico, concordo com Buda. — No romance “Criação”, de Gore Vidal, há um trecho em que um discípulo pergunta ao Mestre se os deuses existem. Buda, sem pestanejar, responde: “Pode ser que os deuses existam, mas não devemos nos preocupar com eles, já que eles não se preocupam com a gente.”

Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 24/10/2010.
http://asesquisiticesdoobvio.com.br/blog/?p=122

sábado, 23 de outubro de 2010

Era uma vez? Não mais era

  
"Homem Primitivo (Sentado à Sombra)", de Odilon Redon (1840-1916) 


Poeta de Meia-Tigela
Era uma vez? Não mais era.
Que te foste e me deixaste
Comigo, sem que eu me baste.
Lançaste-me a mim, à fera

Que me sou: tigre, pantera.
Lacerei-me-laceraste.
Para erguer-me, qual guindaste?
O chão, meu corpo o encera.

Viraste a Contraquimera.
Mas esperei. Troncho, traste.
E agora que retornaste,
Sei que vivi dessa espera.
(Extraído do "CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA E ORQUESTRA", 2º Movimento, Livro 1, Intermezzo)

Charmosa Morbidez

Manuel Soares Bulcão
Minha amizade com o poeta Francisco Moreira, talvez por ter se iniciado na adolescência, tinha a dureza do diamante. Discussões ásperas, trocas de impropérios e até pequenas e mútuas traições, nada a abalava. Lembro-me sempre, às gargalhadas, do dia em que apaguei um cigarro em seu tornozelo: O “Don Juan”, enquanto recitava versos eróticos de Alcides Pinto, tentava explorar com os pés, por baixo da mesa, as pernas da minha então recém-namorada. — Horas depois, eu e ele estávamos em outro bar, jogando xadrez. (Arrependido, deixou-me comer sua rainha em todas as partidas.)
Aos dezoito anos de idade, Francisco foi diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva. Testemunhei seu sofrimento e suas tentativas, sempre vãs, de organizar a vida. — Durante os dois anos que antecederam seu suicídio, embora poeta talentoso, aspirava menos à consagração como tal do que ao anônimo sossego pequeno-burguês: estabilidade psíquica para se manter num emprego, casar-se, ter filhos, cultivar hortaliças no quintal de casa…

Atualmente, devido à onda do “politicamente correto”, a comunidade médica, em suas diagnoses, evita ao máximo o uso de certos termos – neurose, psicose… – que, malgrado a origem científica, converteram-se, após a assimilação pelo senso comum, em ofensas verbais, palavrões discriminatórios, estigmas. Louvo essa política, pela razão acima e também por que, em consequência do progresso da psicofarmacologia, muitas desordens mentais, antes incapacitantes e degenerativas, são hoje controláveis, permitindo a quem delas sofre uma vida “quase” normal. Caso, por exemplo, da “psicose” maníaco-depressiva, agora designada, na lista de Codificação Internacional de Doenças (CID), como “transtorno” afetivo bipolar.
Ocorre que um problema resolvido quase sempre gera outro. No caso em questão, o abrandamento da terminologia vem contribuindo para glamorizar algumas doenças que, com pouco ou nenhum embasamento científico, correntemente são associadas à genialidade.
Decerto que algumas pessoas bem dotadas em criatividade e inteligência sofrem ou sofriam de transtorno bipolar. À guisa de exemplo, cito Gauguin, Van Gogh, Virgínia Woolf, Edgar Alan Poe, Ernest Hemingway e Francisco Moreira. O conjunto desses indivíduos, entretanto, não forma amostra suficiente para se concluir que bipolaridade e genialidade andam de mãos dadas. Um estudo aprofundado certamente revelaria uma quantidade enorme de bipolares com QI mediano, ou mesmo abaixo da média, e cujos episódios maníacos, longe de torná-los mais produtivos, deixam-nos dispersivos, paralisados pela incapacidade de concentração em uma única atividade (por tempo necessário para criar alguma coisa). Em termos metafóricos: ao sentarem no banco de motorista de um automóvel, amiúde transformam este não em um carro de corrida de campeão, mas num torpedo antiposte.
O estado saudável representa a normalidade. Para muitos, infelizmente, normalidade é mediocridade. Ora, indivíduos extremamente narcisistas querem “apenas” aparecer (“O que você quer ser quando crescer?” — “Famoso”, responde Narciso, que nunca cresce), superar a mediocridade “de um jeito ou de outro”. Por isso, muitos destes, desdenhando a saúde “banal”, escolhem para si uma doença que não seja estigma — caso da bipolaridade e da síndrome de Asperger (esta, um tipo de autismo “light” que, supõe-se, estruturou o caráter de I. Newton e o de Einstein). Chegam mesmo, com muita informação e fingimento, a induzir ao erro seu psiquiatra. Cuidado, doutores!

Dedico esta crônica a Ana Miranda, que me disse, brincando, ter mania de saúde. Na verdade, ao contrário dos vigoréxicos, a Escritora é saudável inclusive no seu zelo pela saúde. — Saudável e genial!
(Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 3/10/2010)

8VERBETES

Carlos Nóbrega
 


Uma arraia compõe-se
de linha, papel,
de rabo e de cola,
de vento e de céu
e de olhar-se pro alto...
E um menino na ponta
tendo a certeza
de que é astronauta


Menção Honrosa no XII Prêmio Ideal Clube de Literatura, em 21/01/2010
Prêmio Gerardo Mello Mourão

Quase-elegia para o poeta Mário Gomes

                         

Carlos Roberto VaZconcelos

Mário, velho marinheiro,
tua nau perdida
na tempestade
e tantos versos extraviados;
tu resistindo
entre procelas
feito um camões vencendo a nado.
Mas a cidade, sem piedade,
quer te engolir:
Cuidado, Mário!
Serás poeta, santo, bandido
ou simplesmente um afogado.

Pobre fidalgo
da velha praça (teu escritório).
Quando te vejo ultrajado,
entre a bigorna e o malho,
tenho certeza que tua fúria
divide o mundo em duas raças:
os que te sabem poeta
os que te julgam espantalho

Romanceiro de Bárbara: Cantares de Rebeldia

Em homenagem aos 250 anos de Bárbara de Alencar, nascida a 11 de fevereiro de 1860; e aos 30 anos do Romanceiro de Bárbara, de Caetano Ximenes Aragão (1927-1995).
O Poeta de Meia-Tigela

Há trinta anos Caetano Ximenes Aragão publicava o seu Romanceiro de Bárbara, livro cujo título nos remete imediata e não casualmente ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O autor parece querer estabelecer desde o princípio um paralelo entre os episódios da Conjuração Mineira tão magistralmente recriada em versos pela poetisa carioca, e a Confederação do Equador que, no concernente à participação do Ceará, teve na família Alencar alguns dos significativos protagonistas.

Movidos pelo descontentamento frente às medidas do então recente governo imperial de Dom Pedro I, camadas representativas de Pernambuco, da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará unem-se em oposição ao poder monárquico centralizador. Em nosso estado, depois de aguerridos combates, Tristão Araripe chega a empossar-se como Presidente da Província em 1824, no entanto pouco demorando como tal. A pronta e violenta reação das tropas legalistas leva-o à morte em combate, bem como instaura furiosa perseguição aos revoltosos, culminando com o fuzilamento, em 1825, dos mártires Azevedo Bolão, Ibiapina, Carapinima, Padre Mororó e Pessoa Anta — no antigo Campo da Pólvora, atual Passeio Público.

Se Bárbara de Alencar não esteve envolvida diretamente na intentona de 1824, foi figura emblemática em 1817. Não apenas “acobertara” as conspirações de seus filhos Tristão e José Martiniano (este, pai do autor de Iracema), mas alimentara o ideal revolucionário com sua força de — mais do que matrona — matriarca esclarecida do Crato. É o que atesta a carta-testamento do padre, médico e naturalista Manuel de Arruda Câmara: “A D. Bárbara de Crato, devem olhá-la como heroína”. Heroica seria realmente sua postura quando do fracasso, em apenas uma semana, dessa primeira experiência republicana cearense: assim como seus filhos, é presa e conduzida ao antigo Quartel de 1ª. Linha da capital, e encarcerada sem direito a regalia de qualquer espécie. Pelo contrário, viveria dias de extrema penúria até sua transferência por mar para a Fortaleza das Cinco Pontas em Recife e, dali para Salvador, onde finalmente fora libertada, após uma devassa que com seus respectivos sofrimentos e represálias, durara cerca de três anos. O retorno para casa não resultou, porém, exatamente numa alegria: com os bens tomados pelo Império, e o nome enxovalhado (os adversários políticos naturalmente aproveitando-se da ocasião para a disseminação de toda sorte de maledicência), tornaram-se uma espécie de “exílio domiciliar” seus últimos anos. Não se tem notícias do pertencimento de Bárbara de Alencar às insubordinações que se seguiram à sua soltura. Morre em 1832, a vinte e oito de agosto, aos setenta e dois anos.

Eis os fatos que servem de motivo à lírica de Caetano Ximenes Aragão e ao Romanceiro: escrito num período marcado pela agonia do regime militar e início da Abertura, o livro faz do canto a Bárbara um canto à liberdade. O que é simbolizado exemplarmente pela contínua aparição no poema da Ave da Madrugada que “canta de noite e de dia/ é sua maldição cantar/ cantares de rebeldia/ e aquele que ouvir seu canto/ nunca mais se concilia/ será sempre um encantado/ da ave da madrugada”. E que é revelado ainda pelo poeta no Posfácio à obra: “Este poema é uma metáfora sobre a liberdade. Nasceu em tempos de incertezas. Havia medo, exílio, prisões, torturas, homens e mulheres banidos. Bárbara Pereira de Alencar, primeira presa política do Brasil, na ordem do tempo, sofreu prisão, violência, maus tratos, exílio e teve seus bens confiscados. Mas resistiu e por isso e outras razões, é uma heroína marginalizada na História de nosso País”.

“Uma heroína marginalizada na História de nosso País”, diz-nos o poeta. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a diversos vultos tornados referências nacionais. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a outros vultos tornados referências em nosso próprio estado. Não deixa de ser verdade se confrontamos o que representam as imagens de Bárbara de Alencar e seu filho Tristão Araripe, quando comparadas à imagem que atualmente exportamos como sendo a tradutora de nossa cearensidade: a de um Ceará não só Moleque, mas cuja molecagem vem identificando-se, gradualmente, com o baixo humorismo. Enaltecemos com orgulho a figura de um povo irreverente a ponto de vaiar o próprio sol. Mas diminuímos o valor dessa mesma irreverência quando a igualamos ao riso fácil resultante da piada mal-contada, reprodutora de preconceitos e estereótipos, incapazes de sugerir quaisquer maiores enfrentamentos do status quo. Forjamos cada vez mais a face de um povo que sabe rir (de si); porém, não será esse contentamento algo um tanto forçado, esgar ao invés de sorriso? Quando Caetano Ximenes elege Bárbara de Alencar motivo de sua poética, contribui para o resgate de outra fundamental expressão de nossa formação como povo: a expressão da luta, do confronto, do heroico e do trágico, igualmente cearenses.

Tomemos como simbólico o não nos ter chegado um registro, desenho, nenhum esboço sequer, dos rostos de Bárbara ou Tristão: e empreendamos o avivamento de suas feições, o avivamento de nossas feições, estimulando a presença de seu exemplo entre nós. Se Zenon Barreto soube representar a ausência de tal registro na estátua erigida em homenagem à “Guerreira do Brasil” (para lembrar a obra de Roberto Gaspar), soube também postá-la retilínea e altiva, conforme a vemos na Praça Bárbara de Alencar, na Avenida Heráclito Graça. Felizmente há sempre quem insista na representação de um Siriará combativo, e que sabe fazer da festividade, inclusive, também um momento de exaltação dessa “outra face” de que falamos: é o caso de inúmeros anônimos. É o caso também de Maria do Amparo, que mantém um pequeno museu na Casa do Sítio Caiçara em que Bárbara de Alencar nasceu, no município de Exu, sem apoio governamental ou particular algum. É o caso de Oswald Barroso à frente do anual Cortejo dos Confederados; e agora do Maracatu Nação Fortaleza e seu tema “Bárbara Luz da Liberdade”.

Vejam que não é absolutamente necessário que tomemos a vida negativamente, por a assumirmos heroica e tragicamente: é condição maior do trágico, não a dor, mas a insubmissão ante um destino demarcado. Sorriamos, pois: não com escárnio, mas com a felicidade dos que se sabem encantados pela “ave da madrugada/ que canta de noite e de dia/ (...) cantares de rebeldia”. “Bárbara era feitade pedaços de brisacertezase terra ensanguentada”(Caetano Ximenes Aragão)

“Bárbara era feita
de pedaços de brisa
certezas
e terra ensanguentada”
(Caetano Ximenes Aragão)

Passeio com Milton Dias

                                  

Carlos Vazconcelos


Foi numa manhã nublada de sábado. Havia chovido durante boa parte da noite e o clima estava ameno. Às oito horas toquei a campainha do número 230 da Coronel Ferraz e ouvi lá de dentro um tô pronto! amigável. Era a voz de Milton Dias. D. Iracema, sua mãe, que morava na casa vizinha, vinha saindo e me recebeu com um sorriso tão doce quanto as guloseimas que sabia preparar. Ele veio de lá, barbeado, elegante, a exalar cheiro de colônia francesa. Aproveitando o aperto de mão, num só gesto, puxou-me para a poltrona da sala comunicando que voltaria em um minuto.

Ali sentado, contemplando os quadros, o bom-gosto dos apetrechos da casa simples, mas aconchegante, foi que percebi que me encontrava na sala onde tantas pessoas importantes haviam sido recepcionadas, auditório de tantos bate-papos, de tanta prosa curiosa e divertida.

Por aquela pequena fração do planeta havia passado ninguém menos que Jorge Amado, Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir. Aquelas paredes serenas testemunharam a prosa inteligente de um Moreira Campos, de um Antonio Girão Barroso, de um Lustosa da Costa...

Sábado é o dia preferido de Milton Dias para as prazerosas rondas pelas livrarias e sebos do Centro. E naquela manhã, eu teria o privilégio de acompanhá-lo.
As árvores frondosas que torneiam a Escola Normal estavam repletas de vida e os passarinhos (talvez os bisavós ou tataravós destes que vejo hoje) estavam mais festivos do que nunca, alvissareiros, trabalhando e cantando como o carreteiro de brim azul que hoje passa, rumo à Governador Sampaio, empurrando seu carrinho e assobiando um samba romântico. Esse não se deixou engolir pelas agruras modernas.

Saímos a pé. Começamos nossa andança pela Rua dos Pocinhos. Na esquina ele parou, olhou para os lados, para cima (como quem examina se vai chover), observou o movimento em volta, fez uma cara de resignação e comentou: Esta ex-tranqüila Rua Coronel Ferraz aos poucos vai nos despejando. Tocamos em frente. Ele preferiu dispensar seu fusquinha, alegando não existirem mais estacionamentos na cidade e deu-me a primeira lição: Você já experimentou andar pelas ruas de sua cidade com olhos de turista? E me ensinou a examinar as platibandas, a pescar as últimas balaustradas que ainda existem, a imaginar o que havia no lugar daquela loja que vai emergindo dos escombros de outro tempo, alavancada pela força do dinheiro que ergue e destrói coisas belas.

Cruzamos a Governador Sampaio, a Sena Madureira, a Rua do Rosário. No percurso, um aceno, outro aceno, um leitor o cumprimentou pela crônica do dia anterior, duas estudantes pediram autógrafo, um conhecido quis um dedo de prosa. Seus olhos sempre atentos perscrutavam. Os detalhes da cidade lhe faziam bem. Disto colhia matéria-prima para as suas crônicas.

Alcançamos a Praça do Ferreira, o ponto por ele mais amado. Lamentou a falta dos quiosques em cada esquina, entre eles o Café Java, o desaparecimento dos cinemas Moderno e Majestic e a saudade dos bondes sonolentos gemendo em cima do trilho. Fomos direto ao Leão do Sul. Entre um caldo de cano e um pastel ele me disse: Para conhecer bem qualquer cidade do mundo, é preciso andar de ônibus, ir ao mercado, ao cais do porto, conversar com o garçom, o barbeiro, o engraxate, o ascensorista. Assim você terá uma média do que pensa o povo dessa cidade, como ele vive, mora, sofre, come e trabalha. A questão é saber descobrir. Dizia tudo isso com naturalidade, sem ar professoral.

Entramos em duas livrarias. Ele comprou, se não me falha a memória, um dicionário de francês e o livro de um autor conterrâneo. Achamos, embaixo de um Benjamin, um daqueles bancos anatômicos da velha praça, tão lembrados em suas crônicas. Ali, ele fez uma concisa mas brilhante e regalada explanação sobre autores franceses, citando principalmente Proust, Victor Hugo e Sartre. De vez em quando algum conhecido o interrompia, cumprimentando-o efusivamente. A cabeça totalmente calva chamava a atenção.

O relógio da coluna bateu doze horas. Ele se apressou e, para minha surpresa, pois já estava dando por terminado nosso passeio, disse: Vamos, vamos que a D. Iracema já deve estar com o almoço em cima da mesa...
Em certa altura da caminhada de volta, quando o silêncio quis se instalar, como acontece nos primeiros encontros, disse, em tom brincante: Menino, eu venho dos verdes campos do Ipu, onde pontificava “a guerreira tribo da grande nação Tabajara”.


Não deixei por menos e emendei, usando o mesmo Alencar: E eu venho de Tianguá, que fica no topo daquela “serra que ainda azula no horizonte”, embora minha mãe não se chame Iracema. Seremos aparentados? Pois também sou Vasconcelos. Você do pé e eu do cabeço da Serra.

Ele sorriu largamente da minha astúcia e deu-me dois tapinhas nas costas: Somos, os três, conterrâneos.

Para depois do almoço estava reservada a última surpresa: a oportunidade de conhecer a sua rica biblioteca. Quando nos despedimos já eram quase dezesseis horas. À noite o cronista teria compromissos com os amigos e a Sra. Boemia. Autografou-me o livro Cartas sem Respostas e eu, não podendo ser recíproco, entreguei-lhe um calhamaço, fruto da minha pena sofrível, que ele prometera ler e responder. Estava alinhavada uma amizade que só terminaria com a sua morte, numa manhã de 22 de março de 1983.

No dia seguinte, os jornais choravam em prosa e verso a perda dessa grande alma. Mas ele permanece vivo no coração dos amigos. Milton era um exímio palestrador. Quem duvidar que leia as páginas que ele nos legou, retratos fiéis de seu espírito iluminado.


1º lugar no Prêmio Eduardo Campos de Contos e Crônicas, da Assoc. Cearense dos Escritores (ACE).

O Olhar

Pedro Salgueiro

Quem me conhece bem sabe que eu tenho uma obsessão pelo olhar. E vivo dizendo que o olho é o caminho mais curto da alma para tudo que está aqui fora, no mundo vivido; mas nem sempre foi assim — houve um tempo em que ele significava o mesmo que o olfato, o gosto e outros sentidos vulgares.
E se hoje não consigo mais olhar alguém nos olhos, não é por fraqueza... essa covardia comum a qualquer indivíduo medroso, e sim uma espécie de medo que me consome desde a juventude.

Descobri o poder de um olhar no dia mais infeliz da minha vida. Explico: desde a mocidade eu planejava uma vingança contra um sujeito que bateu no rosto de meu pai, em meio a uma discussão besta, por causa de não sei que teima. Era uma tarde morta, triste — daquelas em que os únicos barulhos ouvidos eram os gritos de crianças, vindos com o vento de um bairro distante. Lembro como fosse hoje, no entanto já se passaram setenta anos desde aquela tarde.
Começaram conversando baixo, depois as vozes foram aumentando, até silenciarem com um tabefe seco, que meu pai engoliu fundo, baixou a vista, apanhou o chapéu do chão... e eu fui seguindo seus passos de longe (nunca o caminho de nossa casa fora tão longo): desde este dia nunca mais foi o mesmo, e até o último instante de sua vida ele jamais haveria de levantar a vista — morreu com os olhos baixos, como se fosse (desde aquela maldita tarde) indigno de olhar os outros nos olhos.

No dia de sua morte jurei para mim mesmo que o responsável por tudo aquilo pagaria com a vida pelo que fizera. Planejei durante muito tempo, teria de ser uma ocasião singular; não poderia acontecer rápido, exigir a uma ocasião especial. Levei quarenta anos estudando a situação, e por várias vezes estive lado a lado com ele, só eu o conhecendo; vezes houve em que trocamos algumas palavras; depois o perdi de vista por quase dez anos. Eu não tinha pressa, estava certo de que logo ele estaria em minhas mão, inevitavelmente.

Um dia eu soube através de um tio que continuava residindo no vilarejo de minha infância que o meu desafeto regressara para passar os últimos dias de sua velhice na terra natal. Havia chegado a hora, não poderia deixar para depois, era agora ou nunca. Convenci minha esposa e os filhos já rapazes de que precisava ir ajudar a família em uma questão de terras, mas que logo estaria de volta a casa.

Cheguei pela manhã, no primeiro trem — e foi como se a vida toda desfilasse em minha mente, as idéias tornavam—se confusas: o passado e o presente se misturavam como se fosse em um sonho. Passei o resto da manhã meio perdido, não conseguia reconhecer ninguém. Da janela da hospedaria fiquei esperando a saída dele para um passeio, e que fosse à tarde, do jeitinho de outrora.

Quando ele despontou na esquina da farmácia já era boquinha da noite. Eu me aproximei: olhei-o nos olhos, bem fundo, puxei vagarosamente a faca e, quando notei que o seu olhar me reconhecia (tive certeza disso), afundei-a toda em seu peito, depois outra e mais outra. Da surpresa inicial de seus olhos passou para não mais reagir tentando se proteger com as mãos, agora aceitava tudo parado a me olhar tristemente - as feições de surpresa e dor deram lugar a uma calma superior, quase arrogante. Olhou-me bem fundo. Neste instante meu braço jazia parado no ar, um último golpe inútil fora contido por aqueles olhos. E o que vi em seguida, teria preferido a morte, um simples olhar sereno, mais forte que toda a minha raiva guardada, um único olhar que eu jamais vira em toda a minha vida, um olhar de quem não estava mais neste mundo, um olhar que (com certeza) nunca mais me dará paz nesta vida. Fugi como o diabo foge da cruz, depois me apresentei com advogado e cumpro (em parte devido à idade) a pena em domicílio; porém sinto que já não vivo depois daquele olhar. E desde aquele dia não levanto a vista, pois não sou mais digno de olhar para mais ninguém neste mundo.

As Superfícies Intactas

                                        

Carlos Roberto Vazconcelos

Hoje, depois de longos anos, revisito o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará. 

Fico por ali, relembrando o tempo em que cursei Letras. Lentamente vou espiando pelos combogós das janelas: outros mestres, outros discípulos sob a mesmíssima arcádia. Fito lá de cima o pátio e, de memória, avisto minha geração, irrequieta, a circular pelos meandros do conhecimento e da dispersão própria da tenra idade.
Como não poderia deixar de ser, vou à biblioteca. O acervo continua em frangalhos como há dez anos. O governo não compra livros, é o que me parece. Mas a viagem não se perde de todo. Visitando a estante do Ceará, deparo-me com uma obra que só conhecia de ouvir falar. Por ser raríssima, nunca tive a oportunidade de folheá-la, mesmo sendo eu um incorrigível comprador e leitor de livros cearenses. Refiro-me a Finalidade do Mundo, do nosso Raimundo de Farias Brito, o primeiro e maior filósofo brasileiro (na opinião abalizada do professor Genuino Sales). Que felicidade folhear aquele livro pela primeira vez. Em verdade, é uma trilogia, acenando para um hipotético leitor. Às vezes desconfio de que os livros é que encontram os leitores.

De imediato, veio a decepção. Os cartões de autógrafo, datados de 2004, onde se registram manualmente os empréstimos (acredite, a biblioteca de Letras e Filosofia da UECE ainda não é informatizada), os cartões estão intactos, uma brancura impecável. Nenhum empréstimo. Em todos aqueles anos, ninguém quis saber de Farias Brito. Pus-me a refletir. Se numa faculdade de Letras e Filosofia ninguém se importa com livros, então para que livros? Olhei todo aquele velho acervo e angustiei-me. Serão cada vez mais inúteis os livros para as novas gerações?

Olhando mais atentamente, descubro outros exemplares do Finalidade do Mundo. Estes, mais surrados. Torno a olhar o cartão de autógrafos, já na expectativa de vê-los sem um carimbo, branquinhos como os outros (para um livro, não há destino mais trágico do que as superfícies intactas, sem uma digital, uma mancha de suor das mãos). Já pensava em indignar-me, desabafar meu constrangimento, decantar a ignorância dos outros e a apatia nacional pelos livros. Pronto, havia encontrado o assunto para uma crônica... Qual nada! O cartão de autógrafos arrolava inúmeras assinaturas de diferentes leitores. Pelo menos uma dúzia de estudantes havia lido a obra-prima do filósofo, se não toda, pelo menos trechos dela.

Os livros antes de tudo precisam ser abertos, folheados, e acabam nos fisgando. Nada mais inadmissível para um livro do que a indiferença. Eu disse uma dúzia de leitores? Não, não é muito, mas nem tudo estava perdido. Respirei aliviado. Um ufa, dois ufas aos deuses do Olimpo. Aprumei o passo, ergui o queixo e saí recompensado. Agora eu também já sabia onde encontrar o velho filósofo.


A Saga de uma Unha do Dedão do Pé Direito

                                           

Pedro Salgueiro

Bem, se todo cronista tem o direito de passar a vida chafurdando seu próprio umbigo, como se todos nós leitores estivéssemos muitíssimo interessados nele, acho que, como projeto mal acabado de escrevinhador de província, também tenho o direito de fazer certas digressões sobre uma parte do meu corpo não tão nobre: O Dedão do Pé Direito, ou melhor, sobre a Unha do Dedão do meu Pé Direito.

Explico antes, o dedão do meu pé direito não é uma parte do corpo tão desprezível assim, pois quando criança e adolescente me deu destaque no futebol como um bom batedor de “bicudo” (coisa que pouquíssimos jogadores de futebol foram capazes, mais recentemente só o artilheiro Romário conseguia bater com maestria de bico de pé). A ponto de ter sido apelidado de “Pedro Bicão”, tamanha a facilidade pra bater na bola com essa esquecida parte do corpo, e, diga-se de passagem, com direção e força. Sempre consegui botar a “redonda” onde queria com o bico de pé.

Mas, descambando dos 40 rumo aos 50, ultimamente o velho bico de pé voltou à sua costumeira insignificância, tendo como tarefas mais nobres furar meias, segurar linha de anzol e uma que outra topada. E esquecido do glorioso dedão ia eu em viagem para Fortim, perto de Aracati, onde o rio Jaguaribe adentra o mar, quando uma criança se trancou no banheiro do ônibus, e fui eu tentar salvar o barulhento pimpolho. Final da cena que não quero lembrar, o garoto livre e eu com a unha entre a porta do banheiro e o carpete do piso. Dor intensa, unha de imediato pretinha de sangue pisado. Uma dor insuportável, uma vontade de urinar nas calças, um manquitolar de volta pra minha poltrona. O dedo todo preto, dormente por um tempo e doendo muito em seguida. Nada de gelo para pôr no local.

Chegando ao destino a decisão de não estragar o passeio por tão “simples” acidente. Aguentei a dor, travei os dentes e fiz de conta que não era nada. Fomos, criançada barulhenta, família desorganizada e eu (triste) atrás para a costumeira barraca de praia (graça a Deus quase vazia). Lá pus o pé sobre um tamboretinho de madeira e fiquei assoprando de longe, lágrimas pra cair no canto do olho. Foi quando seu Dadá (marido de Joana, a barraqueira amiga de muitos anos), jangadeiro experiente, percebeu a arrumação e deu o diagnóstico de unha perdida, sem jeito, e aproveitou e passou o primeiro de uma série de remédios usados por mim nesta saga pelo alívio da dor: “Tinta de Caneta!”... “Como?”, perguntei incrédulo. “Tinta de Caneta! Seca e depois cai!!!”, e foi logo providenciando a dita Bic azul sem tampa e com a metade avariada pelo uso... E lá me vi eu, enquanto crianças faziam castelos de areia, adultos descosturavam caranguejos, riscando pacientemente a minha dolorosa unha do dedão do pé direito. A companheira pondera, como tentando aliviar o ridículo da cena, que talvez seja verdade, pois a violeta genciana usada em ferimentos e machucaduras era também azul.


O dia passado a custos não deu o alívio esperado para a noite, agora a maldita unha latejava. Fomos ao hospital da cidadezinha, sexta à noite, sem médico (uma vergonha que já virou hábito: uma criança com falta de ar tentava desesperadamente chorar e não conseguia, um enfermeiro inutilmente tentava dar um jeito), me mandei prum hospital particular em Aracati, espera (o médico jantava, ou cochilava, ou não sei o quê...), uma olhada rápida sem levantar da cadeira, um antiinflamatório na receita. Saí puto em direção à farmácia.
O alívio do remédio permitiu dormir em paz, no dia seguinte (glorioso sábado de um sol maravilhoso) a dona da pousada vaticinou novamente: “Vai cair”... “É bom pôr um pouco de água quente de noite pra desinflamar”... Mas como conseguir água quente, bacia adequada para um banho-maria de alívio? Fui desta vez para a foz do rio e caminhei pacientemente em direção ao encontro com o mar, o dedo já inchado, luminoso e saindo uma gloriosa secreçãozinha pelo canto da unha. Sentei numa pedra e enfiei o pé na água salgada, cobri com um pouco de alga marinha. Fiquei me lembrando da infância, quando passávamos frequentemente por problemas parecidos e até piores, simplesmente jogávamos um pouco de terra em cima (quem foi criança e nunca usou este infalível método?) e pronto.

Mais uma tarde de capengado caminhar, sem querer admitir batalha perdida. Acompanhando a custo a turma feliz que ganhava a praia, a praça. De noite consegui um pouco de água morna, que de pouco adiantou. O retorno adiantado pra Fortaleza, a esperança do alívio imediato com a volta pra casa. Ledo engano. Mas agora a higiene demorada, a água quentinha três vezes ao dia. Quarta a ida a outro médico, que se admirou da infecção e passou antibiótico, comprimido pra dissolver na água quente e pomada noturna. Nada disso deu resultado! Uma semana depois novo e fortíssimo (e caríssimo!) antibiótico! Uma semana depois o vaticínio: Uma pequena cirurgia pra extrair a unha! A simples notícia já me foi bastante dolorosa, porém seria enfim o alívio... Engano, antes uma bateria de exames de sangue (suspeitavam de diabetes, causando a demora da cicatrização), continuando o tratamento passado antes pra desinflamar...

Hoje completou três semanas de sofrimento e já começo a contar os minutos pra extração da unha (prometi a mim mesmo que a pintarei de novo de azul e a pendurarei no pescoço, em promessa até o fim do ano). Antes já experimentei pelo menos uns quinze remédios diferentes, passados pelos amigos, familiares, curiosos... Ontem fui a uma benzedeira no final do Montese, que garantiu que não demorará a cura.

De bom apenas a solidariedade geral: o atencioso chefe na repartição me deu dois dias de folga (e contou um caso idêntico vivido por ele), minha mãe fez chás e liga todo dia, em casa uma vida de rei, todos olhando pra mim com certa pena. Na rua tratava de manquitolar um pouco mais, o passante olha e põe a mão na boca com espanto. Descobri que (como disse Nélson Rodrigues, mas atribuindo a frase a Otto de Lara Rezende: “O mineiro só é solidário no câncer!”) todo cearense é solidário com unha bichada!

Aprendi muito de medicina caseira, da convencional também. Esta semana fui ao consultório de um muito bom médico e boa gente, Dr. Veras, que recentemente perdeu três dedos do pé por conta de uma simples infecção na unha, nas complicações da diabetes. Ele me prestou solidariedade, aprovou com elogios o tratamento passado pela minha irmã médica Rute, e me receitou paciência, que não extraísse a dita cuja, não fizesse mais um trauma no meu já tão sofrido dedão do pé direito.

Bom, mais de três semanas de sofrimento, dor, raiva, paciência, automiseração, ainda padeço do problema, e agora mesmo, enquanto completo esta mísera crônica, feliz por ter passado a manhã olhando de vez em quando pra unha sequinha e desinchada, percebo um filetinho de secreção bem no canto dela, que curiosamente ainda tem resquícios da tinta azul do primeiro remédio.

P.S.: Também preocupa que já começo a me acostumar com o problema, e ontem à noite me flagrei bolando uma maneira de, assim que sarar, machucar outra unha, só que desta vez do dedo mindinho do pé esquerdo...