sábado, 23 de outubro de 2010

Romanceiro de Bárbara: Cantares de Rebeldia

Em homenagem aos 250 anos de Bárbara de Alencar, nascida a 11 de fevereiro de 1860; e aos 30 anos do Romanceiro de Bárbara, de Caetano Ximenes Aragão (1927-1995).
O Poeta de Meia-Tigela

Há trinta anos Caetano Ximenes Aragão publicava o seu Romanceiro de Bárbara, livro cujo título nos remete imediata e não casualmente ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O autor parece querer estabelecer desde o princípio um paralelo entre os episódios da Conjuração Mineira tão magistralmente recriada em versos pela poetisa carioca, e a Confederação do Equador que, no concernente à participação do Ceará, teve na família Alencar alguns dos significativos protagonistas.

Movidos pelo descontentamento frente às medidas do então recente governo imperial de Dom Pedro I, camadas representativas de Pernambuco, da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará unem-se em oposição ao poder monárquico centralizador. Em nosso estado, depois de aguerridos combates, Tristão Araripe chega a empossar-se como Presidente da Província em 1824, no entanto pouco demorando como tal. A pronta e violenta reação das tropas legalistas leva-o à morte em combate, bem como instaura furiosa perseguição aos revoltosos, culminando com o fuzilamento, em 1825, dos mártires Azevedo Bolão, Ibiapina, Carapinima, Padre Mororó e Pessoa Anta — no antigo Campo da Pólvora, atual Passeio Público.

Se Bárbara de Alencar não esteve envolvida diretamente na intentona de 1824, foi figura emblemática em 1817. Não apenas “acobertara” as conspirações de seus filhos Tristão e José Martiniano (este, pai do autor de Iracema), mas alimentara o ideal revolucionário com sua força de — mais do que matrona — matriarca esclarecida do Crato. É o que atesta a carta-testamento do padre, médico e naturalista Manuel de Arruda Câmara: “A D. Bárbara de Crato, devem olhá-la como heroína”. Heroica seria realmente sua postura quando do fracasso, em apenas uma semana, dessa primeira experiência republicana cearense: assim como seus filhos, é presa e conduzida ao antigo Quartel de 1ª. Linha da capital, e encarcerada sem direito a regalia de qualquer espécie. Pelo contrário, viveria dias de extrema penúria até sua transferência por mar para a Fortaleza das Cinco Pontas em Recife e, dali para Salvador, onde finalmente fora libertada, após uma devassa que com seus respectivos sofrimentos e represálias, durara cerca de três anos. O retorno para casa não resultou, porém, exatamente numa alegria: com os bens tomados pelo Império, e o nome enxovalhado (os adversários políticos naturalmente aproveitando-se da ocasião para a disseminação de toda sorte de maledicência), tornaram-se uma espécie de “exílio domiciliar” seus últimos anos. Não se tem notícias do pertencimento de Bárbara de Alencar às insubordinações que se seguiram à sua soltura. Morre em 1832, a vinte e oito de agosto, aos setenta e dois anos.

Eis os fatos que servem de motivo à lírica de Caetano Ximenes Aragão e ao Romanceiro: escrito num período marcado pela agonia do regime militar e início da Abertura, o livro faz do canto a Bárbara um canto à liberdade. O que é simbolizado exemplarmente pela contínua aparição no poema da Ave da Madrugada que “canta de noite e de dia/ é sua maldição cantar/ cantares de rebeldia/ e aquele que ouvir seu canto/ nunca mais se concilia/ será sempre um encantado/ da ave da madrugada”. E que é revelado ainda pelo poeta no Posfácio à obra: “Este poema é uma metáfora sobre a liberdade. Nasceu em tempos de incertezas. Havia medo, exílio, prisões, torturas, homens e mulheres banidos. Bárbara Pereira de Alencar, primeira presa política do Brasil, na ordem do tempo, sofreu prisão, violência, maus tratos, exílio e teve seus bens confiscados. Mas resistiu e por isso e outras razões, é uma heroína marginalizada na História de nosso País”.

“Uma heroína marginalizada na História de nosso País”, diz-nos o poeta. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a diversos vultos tornados referências nacionais. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a outros vultos tornados referências em nosso próprio estado. Não deixa de ser verdade se confrontamos o que representam as imagens de Bárbara de Alencar e seu filho Tristão Araripe, quando comparadas à imagem que atualmente exportamos como sendo a tradutora de nossa cearensidade: a de um Ceará não só Moleque, mas cuja molecagem vem identificando-se, gradualmente, com o baixo humorismo. Enaltecemos com orgulho a figura de um povo irreverente a ponto de vaiar o próprio sol. Mas diminuímos o valor dessa mesma irreverência quando a igualamos ao riso fácil resultante da piada mal-contada, reprodutora de preconceitos e estereótipos, incapazes de sugerir quaisquer maiores enfrentamentos do status quo. Forjamos cada vez mais a face de um povo que sabe rir (de si); porém, não será esse contentamento algo um tanto forçado, esgar ao invés de sorriso? Quando Caetano Ximenes elege Bárbara de Alencar motivo de sua poética, contribui para o resgate de outra fundamental expressão de nossa formação como povo: a expressão da luta, do confronto, do heroico e do trágico, igualmente cearenses.

Tomemos como simbólico o não nos ter chegado um registro, desenho, nenhum esboço sequer, dos rostos de Bárbara ou Tristão: e empreendamos o avivamento de suas feições, o avivamento de nossas feições, estimulando a presença de seu exemplo entre nós. Se Zenon Barreto soube representar a ausência de tal registro na estátua erigida em homenagem à “Guerreira do Brasil” (para lembrar a obra de Roberto Gaspar), soube também postá-la retilínea e altiva, conforme a vemos na Praça Bárbara de Alencar, na Avenida Heráclito Graça. Felizmente há sempre quem insista na representação de um Siriará combativo, e que sabe fazer da festividade, inclusive, também um momento de exaltação dessa “outra face” de que falamos: é o caso de inúmeros anônimos. É o caso também de Maria do Amparo, que mantém um pequeno museu na Casa do Sítio Caiçara em que Bárbara de Alencar nasceu, no município de Exu, sem apoio governamental ou particular algum. É o caso de Oswald Barroso à frente do anual Cortejo dos Confederados; e agora do Maracatu Nação Fortaleza e seu tema “Bárbara Luz da Liberdade”.

Vejam que não é absolutamente necessário que tomemos a vida negativamente, por a assumirmos heroica e tragicamente: é condição maior do trágico, não a dor, mas a insubmissão ante um destino demarcado. Sorriamos, pois: não com escárnio, mas com a felicidade dos que se sabem encantados pela “ave da madrugada/ que canta de noite e de dia/ (...) cantares de rebeldia”. “Bárbara era feitade pedaços de brisacertezase terra ensanguentada”(Caetano Ximenes Aragão)

“Bárbara era feita
de pedaços de brisa
certezas
e terra ensanguentada”
(Caetano Ximenes Aragão)

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