“Lançamento do livro V: A ‘Se Achademia' de Letras"
Raymundo Netto
“Se achar”, termo em vulgar em toda a cercania, parece reunir um grande mal de alguns de nossos escritores. Sabido é que a vaidade ao mesmo tempo que cega, envenena e contagia, por outro lado, para alguns, tem efeito contrário, provocando constante busca (entenda-se leitura) e aprimoramento na sua práxis criativa.
Às vezes, é tanta a arrogância, e em cordões os arrogantes, que chegamos a duvidar haver no Ceará espaço para tanta barriga, mesmo quando esta é disfarçada no pano passado, apertadinha no cinto abaixo dos peitos. Completamente despidas, dentro dessas barrigas, majestosas majestades se coçam a cavaquear com o “ser achante” sobre as suas qualidades, virtudes e originalidade de seu talento. Alguns, reparem, têm o hábito de falar, “aparentemente”, sozinhos.
Pena que por preguiça, pouca disponibilidade de tempo ou talvez pela simples e indisfarçável inabilidade para a coisa, o incauto acaba por se achar completo, em sua melhor forma, o que não podemos dizer de sua produção, quando esta nos é revelada, e se o é...
Uma vez, numa das crônicas anteriormente publicadas, escrevi que “quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!” Nada mais verdadeiro se tratando desse mundo tão incompreensível (diverso?) que é a literatura. Ademais, acredito: “são tantas as literaturas cearenses”...
Logo acontece o previsível: a tal criatura além de “se achar” sozinha, ainda se acha noutros que, por também se acharem, engrossam as fileiras das pretensas erudições e decidem, julgando-se (ou achando-se) vanguardistas, criar mais um silogeu, sodalício, sociedade ou academia, no caso a “Se Achademia de Letras”.
Alguns, infelizmente, reconheço haver exceções, precisam de um medalhão para garantirem o que no papel não o conseguem.
Mas, medalhão nos peitos, e imortalidade cucuricando-lhe à cabeça, nada mais os segura. Entre loas, panegíricos e discursos laudatórios, assumem suas cadeiras, elegem seus patronos, e montam a sua “ilha”. Digo “ilha”, pois fora dela toda a vaga literatura circundante passa a não mais existir. Nem por meio de mensagens de garrafas ou sinais simbolísticos de fumaça. Nada. Só “nós” e o estimado dicionário enteiado por verbetes do século XIX e epígrafes em latim.
Para falar a verdade, existem palavras que não fazem falta no dia-a-dia. Uma delas é panegírico. Prestando bem atenção, percebe-se que soa até mal, rima com jerico — o que não cabe aos que têm inclinação às coisas do espírito — e parece nome de remédio ruim, não? Tal engenho, fadado ao fracasso, deveria ser esquecido e condenado à fogueira do desuso, o que nos prestaria um serviço intemporal.
E no texto? Chorrilhos de sonetos de pés já engessados e versos livres, mas tão livres que se vão e não ficam, não ficam nunca... Tem também o se achadêmico “ficha limpa”, aquele que embora integre tal entidade, nunca escreveu nada.
Outros elegem o discurso. Adoram discursar. Verdadeiros torturadores da boa fé alheia, não medem palavras, ou melhor, as catam — à lupa e pinça — em dicionários, e se extasiam ao encontrar as mais extravagantes: “Ah, quero é ver se alguém sabe o que é isso...”
O ser gente é sempre uma cacimba de mistérios. Vamos lá:
Um dia, estava eu numa dessas agremiações, convidado a falar como desconhecido à “ilha”, quando dirigiram-se a mim três dedinhos de senhora muito elegante que delicadamente apanhei ainda no ar. Apresentou-se: “Sou membro da Academia X, da Associação Y, colaboradora da entidade Z e blá-blá-blá... — Ficamos com as mãos num lequeado inútil, quando rompi o breve silêncio com um inevitável: “Mas qual o seu nome mesmo, senhora?”
Outra história: um casual encontro que tive com um “se achadêmico”.
Anos antes, havia recebido um livro dele por intermédio de um amigo que desconfiara sê-lo de meu gosto pelo caráter memorialista. Na verdade, era um livro graficamente feio, de escritura rala, mas por se tratar de presente, guardei-o. Não sei como — tenho a memória ainda mais rala —, mas ao encontrar aquele sujeito, consegui lembrar-lhe o nome. Para quê? O homem inflou os peitos, cerrou o cenho, coçou a barriga (atiçou o rei nu) e perguntou o meu nome. Respondi-lhe. Ele divisou o horizonte e balançou negativamente a cabeça, confirmando a minha desprezível existência. “Muito prazer, então”, falei. Mas o homem ficou nas nuvens e pôs-se a achar que eu tinha tempo para ouvir-lhe a fastidiosa história literária. Formado em Letras, mantinha um jornalzinho — o mais lido em seu bairro —, escreveu tantos livros, e mais tinha a publicar nas gavetas, escrevia para um grande jornal (no caderno reservado ao leitor...) e, não me impressionei, fazia parte da Academia Fulana, União Sicrana, Sociedade Beltrana e por aí vai.
Enquanto ele falava, eu pensava “na minha ingenuidade, havia cometido um grave erro: reconhecera o escritor cearense! Droga! Este, reconhecido, é inatingível, inalcançável, imanente e imaneta!”
Outro caso: um escritor — para piorar esse era poeta —, empacotador de supermercado, muito simpático, contou-me que havia mandado fazer nas laterais das pernas de suas calças, bolsos imensos onde guardava seus livros, estes, financiados por personalidades conhecidas da nossa boa sociedade. Assim, ao colocar os pacotes dos clientes no bagageiro do carro, aplicava-lhes o golpe: sacava mais um livro de poemas das calças (tinha vários títulos). Nesse momento sorriu e disse-me que sua obra era um best-seller (ou um Peter Sellers, não lembro bem), e que havia sabido, na semana passada, que seu nome concorria ao Nobel. Não acredita? Tome!
Conheço entidade acolhedora de esperançosos escritores — esperançosos porquanto ainda não conseguiram escrever — que não sei se pela pouca habilidade criativa, ou pela crença verdadeira de que não temos memória mesmo, opta por copiar o nome de agremiação do passado, não se conformando em também copiar-lhe, aos berros, os seus versos, os títulos de periódicos, os seus rituais e outras coisas mais. Podemos chamá-la de “Academimeógrafo” ou “Literatura de Regressão”, para acompanhar a moda espírita...
Tem também a história triste de um “se achadêmico” que lamentava não poder concorrer a prêmio literário porque não poderia correr o risco de perder por se tratar, segundo ele, de “um nome”. E de outro que conta o tanto que fez “pelo Ceará” e que sofre boicotes de todos, mas apenas dos que não o leem e ainda não descobriram o quanto ele é único... Mas se acha...
Discutindo sobre isso com um conhecido, antes de confessá-la em crônica, ele aborreceu-se e afirmou que falar mal de intelectual é coisa de intelectual. Disse-me que eu “me achava”... Pode ser, tais germes do “se achismo” nos espreitam silenciosos até tomar-nos toda a chaguenta alma. Então, imbuído de um pouco da humildade que me resta e cônscio de minha ignorância, recolhi-me ao silêncio da Casa Verde, em despedida ao mundo visível.
Para mim, rogo, desocupado ledor, a sua compaixão; à “Se Achademia”, as batatas!
Raymundo Netto. Interno da Casa Verde, sucursal Ceará, cujo diretor é o Bacamairton Monte.
Contato:raymundo.netto@uol.com.br/ blogue AlmanaCULTURA:
http://raymundo-netto.blogspot.com.br
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