sexta-feira, 30 de setembro de 2011


                                              Devoção

Para Deise Teixeira

             Longos catorze meses, aqueles. Tempo fechado, de luto. Brecha, só aos domingos e na esperança de algum alento milagroso que não poderia vir (sabia) da homilia insossa daquele vigário.

            Os filhos, crescidos, visitavam-na quinzenalmente. Insistiam que deixasse a fazenda pra trás. Vendesse, viesse morar com eles na cidade. Alugariam um bom local. Longe daquele ermo o burburinho da rua poderia renovar-lhe as forças, pensavam. Mal sabiam que na roça a vida pulsava no viço dos campos, no escramuçar dos currais, na cantoria dos bichos noturnos... Ficariam mais tranquilos com a proximidade da mãe e esta, distante da onipresença de alguém que já passara do tempo de continuar importunando os vivos. Nenhum apelo demovia as intenções de Dona Inês, muito menos a ideia de se afastar do lugar onde fora feliz por quase uma trintena de anos.

Os dias transcorriam em melancolias que vinham e suspiros que iam...  Iam em soluços miúdos, mansos, quase sensuais de tão contidos.  Aparentemente monologava com o Alto e mesmo no espesso silêncio da escuridão, nada se ouvia além de sussurros.  Quantas vezes adentrou pela noite salgando as lindas maçãs do rosto em lágrimas caudalosas. Felinto adorava as proeminências de sua face camponesa. O simples toque da pele com os pêlos da mão excitava-o.  Saudades, ai,ai.   Por vezes somente o uso hábil dos dedos apascentava o agito dos desejos. Vãs tentativas de esquecerem seu homem. Achava estranha aquela história do padre sobre a precariedade das coisas, que tudo chegava ao seu termo. “Céus e terras passarão...” O seu amor por Felinto? Não. Jamais passaria.

Chegara por fim a decisão – por todos julgada insana – de encomendar uma estátua do amado em tamanho natural, toda feita em pura madeira-de-lei.  

Duas vezes ao dia trancava-se no quarto. Pouco antes do aroma do almoço invadir os cômodos, fechava tudo: A porta e os olhos do mundo também conhecidos por janelas. Entre quatro paredes, ela, Felinto e um silêncio sepulcral. Filomena bem que tentava auscultar algum som por trás da taipa batida. Um suspiro, um desfalecimento, uma coisinha que denunciasse o juízo de sua patroa.  Ao cabo de sessenta minutos desenfurnava-se para retomar a vida até que, extinto o efeito do remédio, retornasse ao quarto invariavelmente na boca da noite. E passaram-se quase quatro meses nessa novidade até aquele final de manhã de uma segunda-feira de outubro.

As palmadas fortes, vindas da soleira do alpendre, tomaram-na de sobressalto. Alguém atrás de serviço, com certeza. Resmungou. Filomena foi ver. Dispensasse. Não necessitava de mais ninguém naquele canto.

Encontrava-se na sala quando o homem entrou... A empregada à sua frente. Revelou-se quando a gorda Filó saiu-lhe do meio. Mais parecia um colosso.  Uma onda de tremor varreu-lhe as fibras todas, faltou-lhe o ar, só não cambaleou por estar sentada. A lembrança de Felinto, tão enraizada em seu cotidiano, parecia dissolver-se feito orvalho ao contato do calor.

Rigoberto era o nome que, cortesmente, se apresentava como criado. Carregava a tiracolo uma sacola enorme e desejava tão somente mostrar-lhe algumas novidades em utilidade doméstica. Enquanto sacava da bolsa uma variedade infinita de apetrechos, mal percebia os olhos de Dona Inês que a essa altura passeavam pela sua estampa. As mãos possantes seguravam as peças com delicadeza. Os braços morenos ora apoiavam os vigorosos cotovelos nas coxas firmes, ora desenhavam no espaço o manejo preciso dos instrumentos. O tórax, jovem, aproximava-se e afastava-se para mostrar a intimidade das peças. Aquele vai-e-vem causava-lhe frêmitos. Ficou em silêncio praticamente o tempo todo. Os olhos não a deixavam falar a não ser para balbuciar um “sei”... “útil”... “prático”... “hummmmm”... Por fim, terminado a exposição, Dona Inês insistiu na estadia de Rigoberto. Ficasse pelo menos para o almoço que sairia dali a pouco. Deu um jeito de apressar a criada (falsamente, é bem verdade). Para o almoço, sarapatel de bode. E o pirão? Ai, o pirão! O cheirinho tomava conta da sala. Por essas horas Felinto, o marido feito em pau, aguardava com a peculiar paciência das estátuas, o atraso de sua amada esposa. Dona Inês? Quede!

A perseguição perdurou por todo o almoço. O mascate, esgotado o elan da conquista comercial, já percebia o que se passava. A fazendeira insistia com olhares cada vez mais lascivos. A fala, inicialmente recatada (Se o senhor estava há muito nessa vida; de que lugar era o senhor; se pouso certo, possuía o senhor; se família havia, que o senhor fosse chefe...) ia, aos poucos, tomando-se de dengo.

Depois daquele bode, Rigoberto só queria tomar o rumo da estrada. As distâncias eram continentais e seu carro, machucado. Além do mais o efeito da refeição já lhe chumbava os olhos. Tinha a impressão que se dali não evadisse seria impiedosamente capturado. O cafezinho com licor de laranja não houve como negá-la, mesmo porque agora a viúva segurava-o pelo bíceps conduzindo-o quase em súplica para uma rede instalada num alpendre virado pro norte. Ordenando a feitura do café, notou de revés que a criada gesticulava à socapa. E eis a fatídica notícia: Em toda a casa não havia uma acha de lenha sequer, nem mesmo para borbulhar um pires d’água.

Enquanto espichava-se na rede, Rigoberto, em quase estado de dormência, testemunhava estrondoso e fenomenal esbregue.  Das profundezas da casa parecia ouvir a voz tonitruante da viúva. Não conseguia entender muito bem o motivo da descompostura; contudo, conseguiu definir claramente o desfecho da confusão: Pois lasque Felinto, sua égua!

Depois, silêncio.


Brennand de Sousa

quinta-feira, 29 de setembro de 2011


                   Mensagem de divulgação do Pedro Salgueiro:

Amigos,

Finalmente me rendi ao blog, com um pouco de atraso, é verdade... e, principalmente, com a ajuda dos amigos Webston Moura (mentor principal) e Raymundo Netto (meu consultor para assuntos genéricos e aleatórios).
Estou lançando a campanha "Entrem no meu blog" (no bom sentido, claro rsrsrs)
Favor divulgar entre os amigos comuns e os que gostem de literatura, futebol, conversa fiada etc. e tal.
Vou tentar manter três postagens por semana: procurando ficar mais próximo do conceito de blog antigo, como se fosse um pequeno diário de bordo, leituras preferidas, times do coração, eventos futuros e inutilidades afins.
Pois não faz muito minha cabeça o que se tornou o blog moderno, mais um mini-site que um blog.
Enfim, vou tentando, aprendendo, espero que não desistindo rsrsrs
Obrigado!

Abraço!

Pedro Sal.
(Se puderem, coloquem na parte de links de seus blogs para ajudar na divulgação...)
 
http://movimentoesperado.blogspot.com//

Gentilandia Sitiada

Cronica de Pedro Salgueiro, para O Povo



Faz três anos que voltei a morar na Gentilândia (capital do Benfica), já havia residido por sete anos aqui na época em que eu era estudante. Peguei nestes dez anos um amor pelo bairro, principalmente pelo charme de ser um reduto boêmio, de muita diversidade cultural. Um recanto da cidade que cheira a juventude, a movimento estudantil, a futebol, devido principalmente à presença da Universidade Federal do Ceará (e seus vários equipamentos, como Museu e Rádio Universitários, Casas de Cultura, além dos inúmeros cursos de humanidades), Escola Técnica Federal (que todo ano muda de nome e sigla), Ginásio de Esportes Aécio de Borba e Estádio Presidente Vargas (o charmoso e querido PV).
A pracinha da Gentilândia é o coração do Benfica, o local para onde tudo (de bom e de ruim) do bairro conflui... Tudo mais cedo ou mais tarde acaba sempre na pracinha: manifestações culturais e políticas e (naturalmente) seus diversificados lazeres.
Acontece que diferentemente de outros bairros, a população deste essencial reduto de Fortaleza é, em sua maior parte, flutuante. São os milhares de estudantes (professores e funcionários) da universidade, da escola técnica e de inúmeros colégios públicos e particulares, são ainda outros milhares de desportistas que em pelo menos duas vezes por semana invadem suas ruas, são centenas de boêmios que se espalham diariamente pelos infinitos bares.
Então a população do bairro não é somente a que reside (como eu e quase toda a minha família) nele, e sim uma multidão de moradores de outros sítios, que frequentam suas ruas de madrugada a madrugada nos sete dias da semana.
Outro fator fundamental para entender a quantidade de problemas que assolam o bairro e que o fazem ser hoje um dos mais violentos (em assassinatos e assaltos e distribuição de drogas) de nossa capital. Ele fica entre duas áreas pobres da cidade: o Jardim América (e suas diversas favelas) e os inúmeros becos da Marechal Deodoro (ambos redutos de muitos trabalhadores pobres, mas também de bandidos, traficantes, assassinos etc. etc.).
Pois bem, juntemos os pacatos moradores deste aprazível bairro, a enorme população flutuante de boêmios, estudantes, trabalhadores e desportistas que o frequentam, e temos o prato suculento e ideal para os (também) muitos que querem roubar, assassinar e distribuir drogas.
Em resumo: as autoridades não podem tratar um bairro com estas características como se fosse um bairro qualquer, não podem deslocar seus muitos agentes (de trânsito e de repressão) levando em conta apenas os números de seus moradores (e principais vítimas de tudo de ruim que acontece atualmente aqui).
Resumindo mais ainda (suas burras autoridades): este bairro não é somente este bairro, 90% dos frequentadores deste sítio são de outros locais, então a violência é também multiplicada por mil.
Cuidar do Benfica é cuidar de quase toda a nossa capital, a nossa querida loirinha desmiolada pelo sol.

O Benfica, a Gentilândia pedem socorro!!!!!!!!!!

Fonte: http://movimentoesperado.blogspot.com/

         

   A PLANTA

                                          Carlos Nóbrega 

Eu crio dentro de casa
uma planta triste
que é como um cão sem pernas
e cego e triste.
Já quis deixá-la à morte
duzentas vezes
pois dói olhá-la feia
e magra e triste.
Não tem o cheiro doce
das mangas podres
nem pétalas que convidassem
abelha e mosca:
Tem folhas como orelhas
(que não me ouçam)
e caule de um esqueleto
de pobres ossos.
Mal sei se ela tem nome
ou se o esqueci
como nomes têm a avenca
o croto e o cacto.
Vive em seu gueto
de barro aos cacos
e o vento lhe traspassa indiferente.
Quem vai à minha casa
olha de lado
e  critica em silêncio
o meu mau gosto.
Eu crio essa infeliz
dentro de casa
E a rego com amor
e com desgosto.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011




                                CONVITE

A Academia dos Municípios do Estado do Ceará – Almece – convida para a solenidade comemorativa do 28 aniversário de fundação do Sodalício e o lançamento da 8ª Coletânea da Almece. No evento serão homenageadas personalidades do nosso círculo sócio-cultural. Francinete Azevedo saudará a aniversariante. Nicodemos Napoleão discorrerá sobre a Coletânea. Bernivaldo Carneiro fará a apresentação dos homenageados. Em nome destes, falará o padre Geovane Saraiva Duarte.
Local: Palácio da Luz, Rua do Rosário nº 01
Data: 28/09/2011
Horário: 19hoomin.
Traje: Acadêmicos (pelerine e colar acadêmico);homenageados e convidados: passeio distinto.
Será servido coquetel.

                                  Francisco Lima de Freitas
                                      Presidente da Almece







ORELHA

Por Bernivaldo Carneiro
Sócio efetivo da Almece
Membro da Ace


Trago-lhe em triunfo, caro leitor, a VIII Coletânea da ALMECE.

Vendo-a assim, faceira e vestida de elegância, a exalar feromônios literários que mexem com instintos (inclusive adormecidos) dos leitores, desafiando-os a uma prazerosa leitura, nem imagina o quanto foi custoso pô-la nestes trajes.

Aliás, se esta obra (meio tímida em volume, é verdade, mas de fornido conteúdo qualitativo), tivesse consciência de si e das dificuldades do editor para trazê-la a lume, perplexa, diria: “Disputo espaço, logo existo”. E assim despertado para certa lei do físico Isaac Newton e de olho em dado questionamento do matemático francês René Descartes, eu não tergiversaria: “Existe sim!”. Aliás, você que ora sente-a, tátil e visualmente, corrobora com esta certeza.

Enfim, dificuldades comuns a tudo que é publicação da ALMECE. Há quatro anos trilhando pari passu a via-crúcis da arrecadação para publicar nossos escritos, afirmo ex cathedra: não é fácil! Mas nada que leve o incansável presidente Lima Freitas — um monumento itinerante a serviço da cultura alencarina —, a jogar a toalha.

E hoje, às vésperas de soprar a 28ª vela de sua existência, a Academia já levou a público: oito Coletâneas, quatro Antologias, seis Revistas Ilustradas e mais de 100 edições do Informativo Academus.

A presente obra, por sua vez, é composta de 141 páginas onde desfilam 25 acadêmicos do próprio silogeu e 13 convidados especiais. Alguns neófitos na arte da edição de seus escritos; a grande maioria, no entanto, consagrada em matéria de publicações individuais e/ou coletivas.

Entre poemas e prosa (crônicas, contos, ensaios, memórias, causos, etc.) são quarenta e nove títulos que aqui ganham dignidade. Ou, qual outro destino deve ter o escrito literário, senão a publicação? Aquele que escreve não deve ser egoísta a ponto de não dar oportunidade a quem a assim o deseja, de conhecer sua obra.

Enfim, uma apreciável diversidade de matérias em que os autores, cada um a seu modo, expõem o que lhe vai n’alma. Alguns falam de amor; outros destilam inconformismo com as mazelas sociais e os desmandos governamentais; alguns revelam as experiências acumuladas ao longo dos anos; outros prestam homenagens a amigos e a personalidades tidas como exemplo de vida. Sem contar os que dissertam o saudosismo dos inolvidáveis idos da infância e da juventude, vividos no torrão natal. O que é muito justo — diga-se de passagem. Afinal, via de regra é o berço de cada um o seu patrono nesta Arcádia.

Posto isto, encerro esta modesta orelha de ouvido atento ao eco da boa aceitação que a presente Coletânea decerto merecerá da crítica e dos leitores.

  Coisas Engraçadas de Não se Rir XIII: O verso do espelho

Raymundo Netto especial para O POVO

Almoçava sozinho no L’Escale, o melhor lugar para almoçar na cidade, claro, depois da casa da sua mãe, quando chegou-me, ante a mesa, um rapaz a estender-me as duas mãos: “Raymundo Netto, leio sempre de você no jornal. Sou seu fã!”
Brinquei com piada velha: Ah, então é você? “Ora, devem lhe dizer isso sempre...” Não, isso nunca aconteceu comigo antes, e digo isto sem folclore. Tem a minha mãe a garantir não haver no Ceará, quiçá no Brasil e nas redondezas, escritor melhor do que eu, embora nunca me leia nada e assine o jornal concorrente. Sabe como é mãe: “Não li e já gostei”.
Sem cerimônia, puxou a cadeira. Sacou guardanapo, caneta e pediu autógrafo. Senti-me o próprio Moacir Franco ou Odair José, de uns 15 anos, em pleno revival. Tirei do cinto de utilidades um “Cadeiras na Calçada” e o dediquei. Ele abraçou o livro: “Essa edição eu não tinha!” Para não esfriar de todo o meu prato, prenunciada a tardança, pedi: falasse algo de si. Não queria. Preferia expor a sua compreensão dos meus textos, compreensão essa largamente estendida. Tudo lhe era suposto, acreditado, evocado e tão ampliado em sua imaginação, de fazer percebê-la bem mais generosa que a minha. “Eu entendi o que você quis dizer quando...” e ria, ria bastante dessas “coisas de não se rir”.
O fato: Eu não queria dizer exatamente aquilo. Poderia. Talvez gostasse até do dizer além, ou não. Escrever é exercício de desconfiança em si mesmo, uma constante autocrítica. O pensamento dando voltas em nossa cabeça até desmanchar-se em letras a unhar o papel. As palavras não se permitem domesticar. São livres e, acima de tudo, libertadoras. A nossa segurança única é o ancorar do ponto final, o fechar da porteira. Demais, ser escritor, em tese, é quase nada. Escrever pode ser, mas ler é muito mais.
Droga, aquele cara era bom! Passou-me pelo lado cafajeste de todos nós a ideia de sugerir a sua inspirada leitura antes de pôr o selo de envio à redação, mas assim nem tinha graça. Acabei por perguntar se escrevia. “Que me dera... Não tenho esse talento.”
Pelo jeito, nem eu. Tento. Um dia aprendo ou tomarei o túnel do esquecimento, em fila epopeica com alguns melhores do que eu, com o consolo do igual deslembramento de minhas falhas, das atrapalhadas histórias nem sempre alegres ou tristes mesmo às minhas janelas.
Como era o seu nome? “Raimundo. Entretanto, Raimundo de pobre com ‘i’ mesmo”. Pobre, dizia, mas fazia questão: pagar-me a conta, mais salgada que o prato, garanto. Não satisfeito, ofereceu-me carona, “podia dizer para onde”, sabia da minha inaptidão ao guidom, dentre outras que citou zombando a valer — nunca de supor minha tragédia tão divertida. Não aceitei. Deus me livre de saber até onde morava. Jamais.
Porém, tomou-me, não tive como evitar, o número do meu celular. Pensei se ligaria, a cada crônica publicada, a me ferir os brios com tudo aquilo de nunca escrito. Ao mesmo tempo, registrado também o seu número, poderia não atendê-lo, e engendrar, a cada ligação, toda a sua literatura presumida. Nós dois, Raymundo e Raimundo, passaríamos a ser ficção de nós mesmos, como duas faces de espelho num jornal, a tentar nos encontrar no pasmo eterno de nosso próprio reflexo.

Contato: raymundo.netto@uol.com.br

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

                
                       Programa Sem-Fronteiras, Plural pela Paz
                         (Rádio Universitária de Fortaleza - UFC)

                
                            Clique nas imagens para ampliá-las.


                           ENCONTRO COM O BELTRÃO
por Carlos Vazconcelos

Tem gente que veio pra ficar (...)
A casa nossa de cada dia
tem coração.
Henrique Beltrão



A convite do Poeta, Compositor e Professor Henrique Beltrão, sábado passado (17/9/11), participei do Programa Sem-Fronteiras, Plural pela Paz, na Rádio Universitária.
Beltrão é figura ímpar, mas sua mente é plural. Sempre sorridente e muito cortês, seu abraço é amplo porque seus gestos apenas traduzem de maneira espontânea sua espiritualidade. Eu já era ouvinte do programa, cuja proposta é evidenciar os valores culturais da terra, é cultuar a música de qualidade e a poesia, é instigar a boa conversa. Falamos sobre o projeto Bazar das Letras, sobre o livro Mundo dos vivos e sobre as amizades. Recitamos versos, tiramos fotografias, autografamos e sorteamos livros. Ao final, recebi belíssimo presente, o CD Cândidos, interpretado pela Simone Guimarães, todo com músicas de Isaac Cândido. A casa nossa (faixa mais bela, juntamente com Além das fronteiras),  é uma parceria do Cândido com o Beltrão e tem participação vocal de Raimundo Fagner. As duas músicas vieram para ficar, são daquelas que batem no córtex cerebral e descem de imediato para o compartimento do assovio. Foi uma tarde muito proveitosa, porque a arte foi celebrada, as almas foram tocadas e o silêncio, o tão precioso silêncio, só foi substituído pelo colóquio das vozes.
Beltrão, meu irmão, nem é preciso pedir que continue assim, porque você é assim, caráter elevado, viajante da poesia, nauta da sensibilidade. Seu coração é uma ampla casa com varanda e quintal.

                             Àqueles que espero em Paris

Yuri Falcão

                              
Eu deveria ter escrito este texto há três semanas. Ele seria uma carta de despedida para uns amigos e uma carta de “até breve em Paris” para outros. Mas toda a tensão da viagem, as lágrimas, a saudade e uma certa tristeza não me permitiram escrever.

Mas o que eu fiz durante três semanas para que não tivesse tempo de postar algo? Tentei me adaptar, simplesmente: ao idioma, às pessoas, às ruas, ao meu quarto e, sobretudo, a duas velhas senhoras que desembarcaram comigo em Orly: a saudade e a solidão.

Parece um pouco trágico demais. Afinal estou em Paris, a cidade que sempre quis visitar, a meca dos escritores latinos (quiçá de todos os escritores). Como eu poderia me sentir sozinho em um lugar que eu acreditava ser ideal para um retiro filosófico?

Mas Paris não é uma cidade para um viajante solitário, simplesmente porque é bela demais para conhecê-la sozinho. Andar pelo Jardins du Luxembourg,  Quai d’Orsay, Saint-Germain –des-Prés, La Cité sem ter ninguém ao seu lado para olhar e dizer como tudo isso é belo faz com que Paris fique levemente desinteressante.

Enquanto visitava todos esses lugares e outros, que já conhecia por fotos e leituras e que ansiava visitar, me deparei com o mais impensável dos sentimentos: a indiferença. Seria possível não me extasiar com Paris? Não sentir as mãos frias e borboletas no estômago enquanto bebia um café no Les Deux Magots? Sim, vi que é possível ser indiferente a Paris.

Talvez eu seja a única pessoa que não se admirou muito com o Louvre, com o centro Georges Pompidou, com o Bulevard Saint-Michel, com a Pont des Arts, em andar nas margens do Sena. (E muito menos com a torre Eiffel). Por que, então, essa indiferença?

Perguntei-me a mesma coisa depois que saí do Louvre. De lá fui caminhando até o Luxembourg e balbuciando algumas respostas possíveis. De repente, enquanto atravessava a Ponte Saint-Michel vi uma das mais belas cenas em Paris: o sol se pondo ao lado da torre Eiffel sobre o Sena. Parei e me encostei no parapeito. Acendi um cigarro e a resposta me veio: Paris é para depois.

Quando essas duas velhas ranzinzas, a solidão e a saudade, forem embora e eu tiver ao meu lado as pessoas que amo, aí sim Paris será impressionante, bela, meu retiro filosófico…  Enquanto isso não acontece continuarei olhando-a e dizendo a mim mesmo “Ah, quando eles estiverem aqui…”.

Paris é para depois, quando eu caminhar pelo 2eme arrondisement segurando a mão da Carolina Rodrigues; quando sentarmos no Deux Magots, bebermos café e fumarmos olhando as pessoas cruzarem o Bulevard Saint-Germain sem se darem conta que por ali tantas vezes caminharam Sartre, Beauvoir, Camus, Merleau-Ponty… Quando visitarmos nossos escritores mortos, quando assistirmos Huis Clos num teatro em Montparnasse, quando nos deitarmos à noite nos esquentando do frio de Paris… Vivo um sonho pela metade, porque uma parte de mim não está aqui.

Quero ver seus olhos vendo Paris pela primeira vez; quero acompanhá-la em sua primeira ida a Shakespeare and Company; quero ouvi-la apreciando as obras de Monet; quero olhar com ela as esculturas de Rodin; quero… que ela, enfim, viva Paris comigo, porque só assim Paris será real.

Espero com a ansiedade de um menino que o Carlos descubra Paris e a conheça em dois dias da maneira que eu fui incapaz de conhecê-la em um ano. Que bebamos um bom vinho no Champs de Mars, que descubramos queijos comíveis e incomíveis, que conversemos longamente nas cadeiras do Luxembourg sobre nossas vidas, assim como conversávamos no Benfica enquanto olhávamos as estrelas, que ele leia com a rigidez de sempre as coisas que escrevo, que ele leia minhas vontades e medo com seu olhar clínico. Sinto muito a falta de suas palavras.

Aos dois eu escrevo uma dedicatória em separado, em folhas de cores distintas.

E também espero o dia em que verei a Gabriela Sá-Marilaque nos acompanhar por todos esses lugares. Aos que a conhecem, vocês imaginam a emoção que seria andar de carro com ela ao volante pelas ruas de Paris? Quero ver a Stella Maris controlar um ataque de pânico no metrô, reclamar dos parisienses burros e ensinar a ética da maldade na Sorbonne. Quero que a Manu chegue a Paris, mas que vá para a Gare du Nord pegar um trem para uma certa cidade na Alemanha ver alguém (e depois nos contar como foi). Que a Thalita faça trekking urbano pelas ruas de Paris e veja que também é legal viajar fora da América Latina. Que o Davi visite alguns lugares em Montmartre e depois escreva um romance sórdido sobre Paris. Que a Maise venha fazer um curso no Cordon Bleau e use seu chapéu de chef para nos fazer um jantar. Adoraria ver o João Silas, meu pai, se perdendo pelas estantes da BNF. Que a Deive leia Kierkegaard no cemitério de Montparnasse e deixe uma poesia no túmulo do Baudelaire (e corra de medo na saída do cemitério porque tem um mendigo medonho naquela rua). Aos meus amigos que não tem Paris como sonho, estou ansioso em chegar ao Benfica e convidá-los para vários almoços.

Esperaria com toda a alegria possível as outras pessoas da minha família, se eles não tivessem medo de frio ou avião.

Enquanto continuo em Paris na companhia das duas velhas ranzinzas, vou catando pedaços da presença deles. É tudo o que se tem a fazer, por isso é insuficiente.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

                         D. Geni e Ana Júlia (mãe e filha do autor)



“O amor de mãe é mais perigoso para a humanidade do que bomba H”
                                                                                        Millôr Fernandes


                                            Minha mãe faz 70


Crônica de Pedro Salgueiro para O Povo

Minha mãe tem mil e dois defeitos, todos típicos defeitos de mãe.

Acorda cedinho, compra pão, faz o café e leva para a filha preguiçosa. Corre e vai fazer ginástica com os bombeiros. Volta e arruma a sala e varre a calçada e costura na cabeça as primeiras peças do almoço.

Conversa com a sombra, junta as folhas e as falas da vizinha.

Se abanando e soprando a quentura sai para saber do que os filhos (que moram quase todos bem próximos) precisam, uma verdura para a mais ocupada, uma ajudinha com os filhos da professora, uma ligada para a zangada, outra para o descansado.

Mal entra em casa e já maquina ir comprar meio quilo de arroz no mercadinho, um refrigerante mais barato na bodega da Paulino Nogueira, o jornal pra ver a crônica do filho metido a escritor.

Volta para colocar mais água na galinha, mais tempero no feijão.

Liga para a irmã do interior, e (enquanto conversa meia hora) organiza na cachola suas próximas andanças.

Falar com D. Eugênia tem que ser impreterivelmente quando ela se descuida e vai comer e, depois, deita um pouco para assistir ao jornal televisivo, esperando que o sol baixe um pouco lá pras bandas da Igreja dos Remédios... então ela irá (ligeirinha e atenta) visitar seus antigos vizinhos na Vila da Carapinima, onde morou por mais de dez anos.

De tardinha tem suas tarefas da tarde: lavar as louças do almoço, tentar inutilmente acordar a filha que ainda sonha em ter coragem de viver. Liga de novo para algum antigo colega de trabalho, vai pela décima vez ver os filhos da professora, passa rápido pra ver o que comeu o filhinho da ocupada.

De noite tem suas tarefas da noite: toma uma sopinha na casa do mais chato, olha se o genro passou para a caminhada na Praça da Gentilândia; e se for sábado vai à feira pegar as frutas mais baratas, o capote menor e os ovos caipiras.

Então vai descansar na calçada da casa de uma das filhas, mas de olho na danação do loirinho. Logo levanta e passa em frente ao bar do Assis pra vê se o filho mais velho já enche a cara novamente, quando sorri, fala rápido e diz que tem um ovo cozido para a ressaca.

Lá pras dez da noite vai finalmente para casa, arma a rede e assiste ao milionésimo quinto programa da Hebe. Depois arruma as últimas panelas, põe pra descongelar a carne do almoço, limpa o chão, a mesa e a pia “mode” as baratas.

Deita na rede e dorme já pensando no que irá fazer na manhã seguinte.
***

Dona Geni tem mil e dois defeitos, todos eles benditos defeitos de mãe.
Minha mãe procura tempo para tudo... e acha tempo para todos.
Ela só não encontra tempo para envelhecer.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Yuri Falcão, o cara



                         A Fantástica literatura no Ceará


Organizar uma coletânea não é tarefa das mais fáceis, sobretudo quando não se pretende inserir textos aleatoriamente, sem critérios de catalogação, ou aferir valores num processo seletivo. Nesta empreitada, que visa tão somente reunir narrativas fantásticas escritas no Ceará, Pedro Salgueiro contou com mais dois nomes da nossa literatura para a efetivação da pesquisa histórica: Sânzio de Azevedo e Alves de Aquino (O Poeta de Meia-Tigela), o que resultou nesta obra, “O Cravo Roxo do Diabo”: o conto fantástico no Ceará, título tomado de empréstimo de um conto de Álvaro Martins. A ideia inicial era traçar apenas um panorama do conto, mas a pesquisa avultou-se e ficou decidido que, além dos 172 contos selecionados, seriam introduzidos dois apêndices, um com 17 capítulos de romances e outro com 60 poemas, compondo, assim, um panorama amplo do texto fantástico cearense produzido entre os séculos XIX e XXI.

O gênero fantástico se consolidou como estética a partir do Romantismo, com suas narrativas góticas, embora já tivesse suas raízes nas histórias de deuses, fadas e feiticeiras da Antiguidade Clássica. Como todo gênero, o Fantástico teve estabelecidos os seus cânones, continuamente fundamentados e revisados por teóricos como Roger Callois, Tzvetan Todorov, Irene Bessiérre, Louis Vax, Victor Bravo, Filipe Furtado, e, mais adiante, a filóloga argentina
Ana María Barrenechea, entre outros. Mestres do Horror, como H.P. Lovercraft, E. T. A. Hoffman, Edgar Allan Poe e Teophile Gautier deixaram um legado para os amantes do sobrenatural e exerceram influências na ficção fantástica produzida em todo o mundo. No Brasil, as primeiras manifestações aparecem em contos de Álvares de Azevedo e, posteriormente, de Machado de Assis.

A sistematização dos cânones do Fantástico passou por muitas revisões. A mais tradicional, de
Tzvetan Todorov, no livro Introdução à Literatura Fantástica, assevera que ele se alicerça por meio da hesitação do leitor em ‘aceitar’ ou não os fenômenos narrados, desde que tais fenômenos não predisponham uma leitura alegórica nem poética. O crítico estruturalista opõe, ainda, o que ele chama fantástico a outros dois conceitos fronteiriços: o estranho e o maravilhoso; o fantástico ocupa o tempo da incerteza, da vacilação entre aceitar ou não o evento extranatural; assim que se escolhe uma resposta ou outra, o fantástico é abandonado e entra-se no domínio de um dos gêneros vizinhos: o estranho ou o maravilhoso. Nessa acepção, nem todos os textos aqui coletados estariam inseridos no gênero.

Tomando, entretanto, a concepção mais atual, de Ana María Barrenechea, que afirma a configuração do fenômeno em forma de problemas feitos a-normais, a-naturais ou irreales em contraste com factos reais, normais ou naturais, considera-se fantástico todo texto cujo enredo encene acontecimentos que transponham as leis naturais, ou seja, que coloquem em conflito o mundo empírico e o mundo fantasioso.

Na primeira parte da coletânea, dedicada aos contos, constam 172 narrativas organizadas em ordem cronológica de nascimento dos seus autores, tal como ocorre nos dois Apêndices. Todos os textos, embora focalizem o extranatural por procedimentos estéticos diferentes, inserem-se no que se denomina, hoje, literatura fantástica, numa acepção ampla do gênero, tomando-o, pois, como narrativas de mistérios que confrontam o racional e o irracional.

No Ceará, o primeiro conto fantástico de que se tem registro foi escrito por Juvenal Galeno. “O Senhor das Caças” tem a mesma estrutura das narrativas de Álvares de Azevedo em Noite na Taverna: enquanto trabalham com a mandioca, num serão na farinhada, os sertanejos contam histórias de caiporas, aventuras de caçadas e encantamentos. São histórias dentro de uma história. Igual estrutura está no conto “Capitão Maciel, 3.ª companhia”, de Tomás Lopes, cujo enredo deixa claros seus desdobramentos: Depois do jantar, na salinha do café, falava-se em casos estranhos, mistérios do além-túmulo. Cada um contava a sua história, todos, porém, afetando descrença, ceticismo, explicando tudo pela coincidência, numa tentativa de racionalização que não impede o espanto quando se constata a aparição de um morto, motivo também presente em Cruz Filho (“A basílica”), cujo enredo comprova a presença da ex-escrava nas ruínas da igreja onde morreu. Florival Seraine, igualmente, em seu “Guajara”, coloca o insólito em contação de ‘causos’ numa venda.

O realismo cearense foi prodigioso no espírito inventivo das narrativas fantásticas do início do século XIX. Duas representações significativas estão nas narrativas de Pápi Jr. (“A Cruz-das-Malvas”) e Oliveira Paiva (“O ar do vento, Ave-Maria”). No enredo do primeiro, há uma atmosfera propícia para o sobrenatural, na descrição esmerada da escuridão da noite impenetrável e compacta, corria-nos pela frente como um largo pano sujo de fuligem, em que aparece, na estrada, em frente à cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa que lá foi enterrada. Na do segundo, tem-se a aparição de um monstro, no meio da noite, carregando a cabeça de uma mulher (fazendo, ainda, umas caretas horrorosas) para enterrar.

E vários motivos dão asas à criação do conto fantástico cearense, como as peripécias do capeta (“O dia aziago”, de Lopes Filho), aparição de almas penadas (“Alma penada”, de Américo Facó), espectros (“Espectro”, de Gustavo Barroso), visagens (“Julho é um mês que não tem fim”, de Batista de Lima). Histórias de pescador com aparição de sereias (“Sereias”, de Herman Lima) ou botijas (“Uma história fantástica”, de Martins d’Alvarez; “A botija”, de Genuino Sales e “A botija”, de Lustosa da Costa). Algumas vezes, não se configura nenhum fenômeno, tão somente a atmosfera de mistério estabelece a presença do extranatural ou seu prenúncio, como ocorre no conto “Casa mal-assombrada”, de Carlyle Martins (Numa visão macabra e sinistra, atestando a transitoriedade de uma vida de opulência e conforto, a velha casa, como que indiferente ao perpassar dos anos, ensombrada pelas mongubeiras sempre monótonas e sussurrantes, tinha as paredes carcomidas e cobertas de fendas. Por seu aspecto aterrador, atestava ela a glória do passado distante, obscurecido pelas brumas dos tempos e demonstrando como a felicidade humana é incerta e passageira...) e em “A Oiticica”, de Otávio Lobo (Se alguém, rompendo o escuro, passa debaixo de alguma oiticica, sente arrepios de medo, pavor de visagens e assombrações de almas do outro mundo).

São bastante prodigiosos os engenhos dos nossos contistas, seja a dar vida a uma bailarina de bronze, num delírio (“A bailarina”, de Pimentel Gomes); a configurar um milagre de um padre que salva, com sua atitude, um jovem médico da fúria de fanáticos religiosos (“O milagre”, de Fran Martins), seja a atribuir a concretização de um fato insólito à fé em Nossa Senhora, como o faz João Clímaco Bezerra (“História do mar”), ou a fazer sorrir um macabro boneco de Judas (“Judas”, de Edigar de Alencar).

Entre muitos dos textos modernos, permanecem os temas tradicionais, como a metamorfose e a morte: no conto “Pedra encantada”, de Rachel de Queiroz, A história é que toda véspera de Ano-Bom ao bater da meia-noite a pedra se desencanta. ...molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro. E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira da água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho. Já na narrativa “O 10 nos limites do Bené Gavião”, de Barros Pinho, O Bené pulou este batente e saiu daqui com uma cabeça de onça, o corpo de homem e asas de gavião encantado.

A morte toma forma humana em “Dizem que os cães veem coisas”, de Moreira Campos, que a personifica na figura de uma mulher, antiquíssima, atual e eterna, para levar a vida de uma criança que se afoga na piscina enquanto os pais se divertem numa festa. Do mesmo modo, no romance A Casa, de Natércia Campos, além da antropomorfização da casa, que é a narradora-testemunha de muitas histórias que se passaram sob o seu teto, a morte também assume a forma de uma pessoa que surge inusitadamente quando ocorre um suicídio por enforcamento em um dos quartos. No conto “O encontro recidivo”, de Giselda Medeiros, os mortos dançam e pensam; nos enredos criados em “A capa de chuva”, de Sânzio de Azevedo e em “As almas do rio perdido”, de Lucineide Souto), pode-se perfeitamente conversar com pessoas mortas; em “Terror”, de Glória Martins, bonecas adquirem vida, riem pavorosamente e cometem crimes.

No conto “O Homem de Neandertal”, de Rubens de Azevedo, não há fronteira entre o presente e o passado; o narrador tenta proteger um amigo arqueólogo de um atentado fatal, mas não consegue: [...] não sonho. Parece que penetro numa fenda do tempo e participo realmente daquela vida primitiva. O arqueólogo, mesmo trancado no quarto do amigo que o vigia pelo lado de fora, é assassinado, durante a noite, por um homem das cavernas que já foi seu objeto de estudo e já vinha, há muito, ameaçando tirar-lhe a vida. Já R. Batista Aragão instaura o sobrenatural na figura de uma alma penada que aparece na estrada para pedir ajuda aos incautos. Diz o narrador de “O assobiador do Folha Larga”: [...] sexta-feira, 13 de agosto e noite de lua cheia. Como reforço às possibilidades de encontro com os mistérios do além, havia e bastante comentado, o “Assobiador do Folha Larga” cuja figura era tida como infalível. /.../ Corcunda, rosto coberto, pernas alongadas e a imitar com perfeição as pernas de um alicate. Fez-me lembrar de relance a fealdade do Corcunda de Notre-Dame. Conduzia no dorso certo fardo volumoso, talvez pesado e sobretudo incômodo, uma vez que o soprar constante demonstrava cansaço. Aproximou-se ainda mais, do local onde eu me encontrava e deu o ar da costumeira e civilizada educação, tratava-se, na verdade, de um filho que há tempos assassinara o pai e ficara a vagar, carregando um peso nas costas, qual Sísifo castigado por Zeus.

No conto “Quadros em movimento”, de Lourdinha Leite Barbosa, “os personagens” dos quadros afixados na parede do apartamento da narradora libertam-se e saem, como em rebelião, cada um contando a sua história de aprisionamento nas telas; quando o leitor tende a racionalizar o acontecimento, atribuindo-o a um delírio da narradora que se confessa extremamente cansada, eis que ela desperta com a queda de um quadro e percebe que a tela está completamente branca, sem vestígio de tinta. Já no conto de Rosemberg Cariry, ocorre uma situação inversa: um homem adentra uma tela e, logo que se integra à paisagem, numa sensação de bem-estar, descobre a presença de um leão feroz. No enredo de “Escadaria”, de Mônica Silveira, a personagem entra no cenário de um desenho, depois retorna à realidade, como se o insólito fosse natural. No “O leopardo da galeria Pedro Jorge”, de Aldir Brasil Jr., o narrador inicia o conto declarando Escapou do Bom Jardim depois do sumiço da mãe e instalou-se para sempre nas paredes da cidade, feito colagem barata; após inusitadas situações, o personagem desaparece sem que saibamos se era realmente homem ou bicho. Em “A última obra”, de Isa Magalhães, é a leitora que entra na obra que está lendo, fundindo realidade e ficção.

A técnica da tentativa de racionalização do evento fantástico, de que falamos há pouco, própria do escritor consciente dos cânones do gênero, está também presente na narrativa “Tugúrio”, de Carlos Roberto Vazconcelos; quando o leitor pensa que tudo o que o personagem viveu foi apenas um pesadelo, o narrador o arrebata com a informação: O ambiente agora era úmido e fétido. Verificou as palmas das mãos com olhos abismados. Mal podia acreditar. Teve visões difusas do seu inferno. Mas ainda não era hora de purgar a alma. Só quando voltou a si definitivamente é que foi recordando... aos poucos... E compreendeu, com assombro, que o pesadelo estava apenas começando.
 
No universo fantástico, tudo é perfeitamente possível: unhas que surgem durante a noite (“Unhas”, de Ana Miranda); ondas que aparecem repentinamente e invadem a cidade (“A onda”, de Adriano Espínola); a moça que tem gatos dentro de si (“A menina que tinha gatos dentro de si”, de Carmélia Aragão); uma cidade estranha, dominada pelos dragões, que remete a uma alegoria (que não se concretiza) da impossibilidade de se viver nas metrópoles atualmente (“Os quatro dragões azuis”, de Dimas Carvalho); o jogo de dama ativo mesmo após anos da morte de seu dono, que o movimenta durante a noite, seguindo o ritual de quando estava vivo (“O Jogo de Damas”, de Pedro Salgueiro). No texto de Jorge Pieiro, “O bicado Oreblas”, o que ocorre no sonho do personagem se torna realidade quando ele acorda, como se o mundo onírico e o real tivessem feito um pacto.

O insondável mistério da morte permite muitas experiências estéticas e inspira a criação de universos que transcendem a razão. No irônico “Pequeno interlúdio para o desespero”, de Airton Monte, a personagem parece ter passado a vida a aprender a cozinhar para os seus familiares, pois, quando atinge o seu objetivo e os procura para se sentarem à mesa, todos viraram peças de pedra ou de cera; a descontinuidade do tempo permite que ela não o perceba. Em “Folhas caídas”, de Nilze Costa e Silva, a vida da personagem depende da vida da planta; quando o vegetal murcha, a moça sabe que é hora de partir. No conto de Silas Falcão, “O celular”, o protagonista, após retornar de um enterro, recebe a ligação da pessoa morta. Já em “O sobrevivente”, de Tércia Montenegro, são “as nuvens ruins do céu” o elemento desencadeador de uma maldição.

Acontecimentos inusitados se desdobram nos enredos, tornando possível o que parece absurdo. Nilto Maciel
metamorfoseia um rosário na figura de um estranho homem: [...] o rosário não parava de se mover, arrastava-se pelo chão como um réptil, dando voltas ao redor da mesa e de nós. E só então compreendemos a verdadeira natureza das contas. Não, não se tratava de um rosário de contas, de um objeto, mas de um ser vivo. Raymundo Netto, no conto “Anúncio”, cria um personagem que, no decorrer dos fatos, inquieta-se com os olhares e as atenções que atrai; só no final revela-se o mistério: Foi ao banheiro, torceu para que a cunhada ali não estivesse, e encostou-se, porejado, à pia. Foi então que teve a conclusiva revelação: ante ao armário do banheiro, percebeu que, ao invés de sua costumeira face, havia um espelho!

Se os fantasmas ‘alvacentos e aterrorizantes’ eram os instauradores do insólito nos primeiros contos fantásticos, fazendo jus a uma era de crendices em visagens e espectros, no nosso tempo, o extranatural pode ser apenas a desagregação do real, e os motivos se atualizam para traduzir o medo de um novo tempo: uma planta, os pés inchados, um relógio, ou “humanóides planando sobre discos metálicos”. São muitos os contistas cearenses que enveredam pelo insólito; alguns de modo mais tradicional, instaurando um clima desagregador e o medo; outros naturalizam o extranatural, trazem-no para a rotina do personagem sem a instauração do pavor, embora colocando o leitor diante de fatos que fogem da lógica referencial.

Na segunda parte da coletânea, estão capítulos ilustrativos dos 17 romances fantásticos escritos por cearenses. O primeiro, A Casa Assombrada, de Bezerra de Menezes, como o próprio título prenuncia, traz a inserção do sobrenatural, a presença de barulhos estranhos e mesmo uma assombração corporificada, capaz de interagir com os vivos para horrorizá-los: De repente, foi a atenção de um e de outro atraída para a aparição de um terceiro, embuçado em um capote escocês, que se acocorou ao pé de Manoel e pôs sobre as brasas a sua espetada. Esta, em vez de ser de carne, era um sapo enorme, cuja gordura derretia-se e pingava nas brasas, que crepitavam sinistramente. Os dois olharam-se como quem dizia: temos obra. O intruso, mudo e impassível, virava o sapo, ora de barriga para cima, ora de costas, e, por fazer obséquio a quem lhe fornecera as brasas, levava-o acima da espetada vizinha para untá-la com a gordura que escorria do bicho. O Fantástico se realiza de forma tradicional, tanto pelo espaço, como pelo clima soturno que se estabelece, quanto pelo motivo que conduz o enredo.

Em O Reino de Kiato, segunda obra catalogada, de autoria de Rodolfo Teófilo, não há a presença de assombrações, mas tão somente de elementos que subvertem a normalidade, como a flor esquisita e curiosa, que Tinha corola de um sem número de pétalas azul ferrete, quase negro, como que brunidas, com reflexos metálicos, e no centro os órgãos de reprodução, alvos como arminho; engastava-se num pedúnculo curto, envolvida num ambiente delicado e sutil perfume bem como a uma crisálida, uma joia que resplendia aos raios do sol, vistas pelo dr. John King Paterson, ao chegar em Kiato, cidade que causava estranheza pela soberania de sua liberdade depois de mais de um século de reação contra os usos e costumes resultantes da intoxicação alcoólica e sifilítica. Já A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, retoma o diálogo com os mortos, visto em A Casa Assombrada, configurando um fenômeno que ultrapassa o estranhamento, a mera anormalidade, e instaura a presença do sobrenatural, tal como ocorre também em O Valete de Espadas, de Gerardo Mello Mourão, por meio das figuras do casarão e de Gamaliel que figuram ao narrador como aparições diabólicas, modificando, inclusive, a sua visão sobre a aparente normalidade de sua amada Jezebel.
 
 A casa assombrada, ou o casarão, ou simplesmente a casa, são espaços e motivos de várias narrativas presentes nesta coletânea. Na obra de Natércia Campos, a casa é a personagem protagonista e a narradora de fatos que atravessam gerações. Em o Mundo de Flora, de Angela Gutiérrez, há um casarão onde se ouve a voz dos mortos; em Leão de Ouro, de Natalício Barroso, há até a observação: não há casa antiga que não tenha seu fantasma, já que os mortos arrastam chinelos, desarrumam coisas e acendem velas. Em Coração de Areia, de Marly Vasconcelos, também são os mortos os autores dos fenômenos, pois se manifestam e exercem influência na vida dos vivos através dos seus retratos. No enredo de Busca, romance de Teoberto Landim, igualmente há uma casa mal-assombrada, onde, durante a noite, estilhaçam-se garrafas no chão. Seja com um leitmotiv futurista, como disco-voador; inusitado, como cabeças de deuses que dão orientações para a vida; ou tradicional como a visão de almas, o ouvir de vozes, a petrificação de uma moça durante a missa ou o revoar de morcegos presos em gaiolas, aparição de serpentes ou abutres, transformando o clima de toda uma região, as narrativas se constroem por meio de fenômenos inexplicáveis pelas leis da razão.

Em Os Verdes Abutres da Colina, de José Alcides Pinto, loucura e maldição se fundem, criando um universo completamente surreal. A lógica dos fatos é subvertida pela presença de uma maldição em todo o Alto dos Angicos, região fundada pelo coronel Antônio José Nunes, o garanhão luso que naufragou naquelas terras e a povoou unindo-se a uma índia. Ele multiplica a população ao relacionar-se com várias mulheres ao mesmo tempo, inclusive com suas filhas; assim, seus netos são também seus filhos. Os verdes abutres anunciam o fim de tudo, transformam toda a atmosfera, mesmo com a crença do povo no poder do demônio preso numa garrafa.

Não necessariamente o evento instaurador do insólito percorrerá toda a obra romanesca; desde que encenado, em qualquer passagem, dará a ela a caracterização do gênero de que ora tratamos, o que não negará, se existente, a presença do estranho, do maravilhoso, do macabro ou do surreal.

Quanto aos poemas, os teóricos do gênero não citaram, em nenhum de seus estudos, peças para ilustrar características do Fantástico, tão somente mostraram a sua configuração em composições narrativas como o conto e o romance. A despeito dessa desconsideração pela presença do gênero em versos,
um dos primeiros textos que incorporaram elementos como gigantes, deuses e intervenções sobrenaturais na literatura foi o “Poema de Gilgamesh, composição suméria de 2000 a. C, a que se seguiram as epopeias Ilíada e Odisseia, de Homero, todos, como é natural do épico, versos narrativos com forte inserção do extranatural. Já na Idade Média, apareceu, na Índia, o Mahabharata, poema que narra acontecimentos históricos que têm, nitidamente, a intervenção do mitológico. Especificamente no Ceará, tais manifestações se deram, inicialmente, na poesia do patriarca Juvenal Galeno, do poeta Barbosa de Freitas, dos romancistas Bezerra de Menezes, Rodolfo Teófilo e Emília de Freitas, bem como em contos e poemas de Antônio Sales, percorrendo as correntes estéticas que se seguiram e se sobressaindo em gêneros textuais variados.

Tomando o Fantástico na acepção de fantasia ou encenação de evento transgressor da normalidade, o organizador decidiu incluir nesta seleção poemas em que transparecem imaginações delirantes ou evocam criaturas que subvertem fatos naturais, como bruxas, duendes, gnomos, feiticeiras, morcegos, sereias, satanás. Compreendendo-o, em sua concepção primeira, como instauradores do mal, os versos são abundantes em palavras como: treva, morte fúnebre, lúgubre, sombrio, tormento, fantasma, mistério, vulto, pântano, assombração, medo, maldição, alma, soturno, visagem, espectro, pavor, horror, presságio, todas pertencentes a um campo semântico muito semelhante. O ponto alto da compilação está nos poemas narrativos, dos quais se podem destacar Excertos de Brosogó, Militão e o Diabo, de Patativa do Assaré, em que Brosogó acende vela para o diabo e o encontra, na vida real, como seu defensor; em O vestido que verteu sangue, de Oswald Barroso, conta-se a história de Maria Sinhá, cujo vestido verteu sangue, como anuncia o título, Saiona, a mulher dos olhos de fogo, de Rouxinol do Rinaré, cujo título já anuncia a desordem do real.
 
Seja no conto, seja no romance ou nos versos, os fenômenos sobrenaturais e o insólito são fontes de inspiração perene para os escritores cearenses. A desagregação da lógica, a subversão do que chamamos de normalidade, se dá, sobretudo, pelo insondável mistério da morte, que predispõe a inquietação e a inventividade dos que sondam seu enigma. A metamorfose, a aparição dos mortos, a presença de seres sobrenaturais ou providos de poderes inusitados colocam o leitor diante de um universo em que absolutamente tudo é possível. Com essa amostra, tão bem selecionada pelo organizador da coletânea, vê-se que o gênero fantástico permanece, embora com seus cânones revisados, e que a produção da nossa literatura está em constante busca do universal; ultrapassou, há muito, as fronteiras do regional e pode se afirmar, qualitativamente, em qualquer contexto.

                                              
Aíla Sampaio é professora da Unifor. Poeta e ensaísta, é autora de Os Fantásticos Mistérios de Lygia (2009). E-mail: ailasampaio@unifor.br