segunda-feira, 16 de maio de 2011

         
                        
           O concerto inebriante do Poeta de Meia-Tigela

(Nilto Maciel)



Vi, pela primeira vez, o Poeta de Meia-Tigela numa noite de ano da dezena inicial do terceiro milênio. Visão que me estarreceu. Imaginei-me em estado de alucinação. Sim, aquela figura esguia, quase transparente, alva de pele e roupas, a caminhar na minha direção, me fez tremer. Culpei a bebida. Andava então a me embriagar todo dia. A ter pesadelos, acordar trêmulo e com ganas de subir ao mais alto do prédio e de lá me jogar para o precipício do nunca mais.

Eu o esperava, é certo. Pois Pedro Salgueiro combinara uma visita a mim, tal qual vem fazendo há quase dez anos. Toda semana me telefona: Nilto, quero te apresentar um poeta novo. Nunca diz: Levarei à tua presença uma poetisa jovem. Vem sempre acompanhado de meia dúzia de poetas e prosadores.

Quando pronunciou o nome do visitante, brinquei: Homem de Deus, já me bastam os poetas de meia-tigela que você traz ao meu tugúrio de concreto. Por que não vem com Jorge de Lima, Murilo Mendes, Nauro Machado? Ele riu, porque sempre ri: Você não irá se arrepender. Este é dos bons.

O Poeta de Meia-Tigela tem outro nome: Alves de Aquino. Porém, prefere o primeiro. Estudou filosofia, que conhece como poucos filósofos, de Sócrates e Platão a ele mesmo, e leciona a matéria numa universidade. Sua figura, no entanto, não lembra a de um pensador grego, mas a de algum personagem de Dostoievski, de quem é leitor full time.

Nos primeiros momentos do encontro, falei pouco, desconfiado, a mirá-lo de soslaio. Quem seria aquele sujeito de aspecto ultrapassado, barba comprida e rala, cabelos assanhados, olhar de desvairado, jeito de parricida, fala mansa?

Outros encontros ocorreram. Mais conversas recheadas de lucubrações e regadas a éter e demais anestésicos. Aos poucos, tornei-me seu admirador, não por sua sabedoria aristotélica, sua maneira platônica, sua quietude socrática. O que nele seduz é a humildade. Não vive a esfregar poemas na cara dos ouvintes. Sabe ouvir e falar, sempre atento aos menores ruídos ou aos maiores silêncios.

Poeta da genealogia daqueles de quem pedi presença a Pedro, não necessita de apresentações, apesar de novo. Entretanto, me solicitou prefácio para seu magnífico conjunto de poemas Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra, editado em 2010. Se eu soubesse da grandeza deles, teria recusado o convite. Pois não tenho aptitude sequer para falar da Grande Poesia, quanto mais para analisá-la. Sou apenas leitor indolente e sem perspectivas de dar um passo a caminho da hermenêutica. Ele, porém, não conhece o meu estado mental e, inteligente e magnânimo que é, quis me privilegiar. Rabisquei umas tolices e ele as achou saborosas. Estou em seu livro, pois.

O Poeta tem me visitado com frequência. Falamos de quase tudo: livro, literatura, música, cinema, vida, mulher... Nunca se mostra sábio. Chega a fazer perguntas. Não, não quer medir meus conhecimentos. Não é daqueles homens sabidos que destilam sabedorias em mesa de bar. Não profere frases feitas ou extraídas de livros. Fala a língua dos poetas. Ou nem tanto. Não dá lições, não se exibe com ares de professor. Parece aluno de escola primária ou aprendiz da vida. Ouve com atenção, opina, discute, sem empáfia, como se todos fossem poetas da sua estatura. E não somos. Ou não sou.

O que dizer, então, das mulheres do Poeta? Amante doentio de Emma Bovary, Anna Karenina, Bárbara de Alencar e outras heroínas literárias ou reais, ele vai da Rússia czarista e da França puritana à Fortaleza do final do século XX e do princípio do XXI, movido pela mesma paixão: a liberdade de amar e viver. Com aparência de santo ou místico – não aquele figurino de Francisco de Assis adotado por outro poeta apaixonado, o asceta Alcides Pinto –, modula seu cântico nos colos febris das raparigas (no sentido antigo da palavra) em flor.

À maneira de Caetano Ximenes Aragão, em Romanceiro de Bárbara, o Poeta de Meia-Tigela compôs poemas para a primeira grande revolucionária nascida no Ceará, reunidos no volume Memorial Bárbara de Alencar & Outros Poemas (2008). E lhe deu voz: “Costuma ser grata / A volta pra casa. / Mas não neste caso / Em que me maltratam”.

Alves de Aquino é, também, divulgador de arte. Por algum tempo, editou um jornalzinho, repleto de poemas, contos, entrevistas com escritores e muito mais. Numa das edições, estampou entrevista comigo, realizada por ele e Mario Sawatani, na casa deste. Para nos sentirmos relaxados, serviram vinhos chilenos e música popular brasileira. Ligado o gravador, perdi a compostura e, instigado pelos dois entrevistadores, contei tudo. Tanto quanto um torturado. À hora do almoço, a conversa resvalou para os porões mais escuros da nossa intimidade. Muito sério, o Poeta me chamava de Príncipe Míchkin, como se me visse russo e idiota. Quis me zangar, mas, me conformei com minha condição, ao vê-lo confundir Mario (seu amigo de infância) com Dimitri Karamazov. Felizmente, o inteiro teor daquele colóquio não chegou ao jornal.

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