segunda-feira, 2 de maio de 2011

                                
                                    Despotismo da maioria
  
Estudos comprovam que muitos pedófilos foram, eles próprios, vítimas de abuso sexual na infância; que filhos de pais cruéis tendem, quando adultos, a se tornar tiranos domésticos; que jovens constantemente brutalizados por outros – em geral um grupo – não raro respondem de forma irracional, aviltando-se a si mesmos (perda de autoestima, depressão, suicídio) ou violentando os ainda mais fracos. E assim, por contágio – de forma sub-reptícia, pelo viés do inconsciente – o mal se propaga.
Sim, alguns reagem à agressividade sádica com agressividade viril (atitude tão bem retratada no filme sueco Evil, raízes do mal). Não poucos desenvolvem empatia por indivíduos e minorias hostilizados e, por conseguinte, aversão à violência que tem por alvo qualquer um que foge dos padrões, os que não se enquadram na homogeneidade normal, aqueles que não sacrificam sua autonomia pelos pequenos e obsoletos valores das tribos. Estes, que trazem no sangue benignos anticorpos, também são minoritários, nadam contra a maré e lutam contra os que tentam segregá-los. Seu número, no entanto, cresce dia a dia, de modo cada vez mais perceptível.
Infelizmente, às vezes, como naquele dia de cão em que se deu o massacre de Realengo (5 de abril de 2011), o mal se mostra radicalmente, matando crianças sem antes congelar-lhes – requinte! – o coração com a adrenalina do pavor. Surgem, nesses momentos, fendas na rotina pelas quais vislumbramos o absurdo, o não-sentido. Psicólogos, neuropsiquiatras, sociólogos, literatos e religiosos são convocados pela mídia para explicar os motivos do assassinato em massa, fazer-nos entender atos tão extremos. Sociopata, psicótico, necrófilo exibicionista, apenas um débil mental macaqueando jihadistas… Afinal, de quem se trata? Alguém, paralisado de espanto, lembra uma sentença de Loren Eiseley: “Não confiaremos em ninguém. O homem é a maldade. O homem é um animal. Veio das trevas dos bosques e das cavernas.” — Mas que animal selvagem age assim? Não seria um animal doente?
O assassino Wellington Menezes de Oliveira (24) era produto e escória de muitos fatores entrelaçados (genes, ambientes…), inclusive de si próprio, isto é, da sua liberdade de escolha que, mesmo exígua, conferia-lhe responsabilidade moral por seus atos (presumindo-se que não sofria de doença mental grave, caso em que seria juridicamente incapaz).
Do vídeo que ele deixou, pinço, no entanto, o trecho em que, evocando certa irmandade imaginária, Wellington fala que “nossa” luta não se deve exclusivamente ao bullying. Ora, isso é o mesmo que dizer que sua primeira experiência com o rolo compressor da opinião pública – a violência física e psicológica que sofrera na escola, reiteradamente, por algum traço destoante dos gostos e preconceitos da maioria dos colegas – foi o dínamo “quase exclusivo” da sua ação.
Na fase da infância que, segundo Freud, equivale ao período de latência, a escola passa para o primeiro plano na socialização do indivíduo. A criança, muito gregária, identifica-se mais com o grupo como um todo do que com seus membros considerados um a um. Por esta razão, e também pelo fato de o seu sistema nervoso central ainda estar amadurecendo, o bullying pode gerar efeitos desastrosos e irreversíveis, principalmente se a vítima tiver predisposição genética para enfermidades neuropsíquicas.
Wellington matou indiscriminadamente porque seu ódio não era pelas pessoas isoladas, mas pelo grupo. Curiosamente, disse que agiria em nome da “irmandade” à qual, em seu delírio, pertencia.
Há os que se tornam melhores após grande sofrimento emocional; outros, porém, subsistem como escombros e desejam transformar o mundo em algo semelhante a eles. Stendhal, em seu romance O vermelho e o negro, escreveu que “são dos momentos de grande humilhação que surgem os Robespierre.” Eduquemos, pois, nossas crianças contra o espírito de malta e sua insídia: a vendeta dos arruinados pode voltar-se contra qualquer um — ou todos nós.

Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.

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