O Coração
Por Brennand de Sousa
Madrugada de hoje sonhei com Ureínha. Um pesadelo só. Entorpecido, conduzia-me por uma via espessa, impregnado por toneladas de penumbra; mais parecia dessas calçadas do inferno que levam a lugar nenhum. De repente o moleque surgia com olhos de fúria... a esclerótica empurrando sua íris negra pra baixo. Num acesso de fúria tardia, a boca – ainda com dentes – urrava enquanto os braços, desconexos, brandiam em minha direção. Seu grito choroso revelava o bebê gigante abandonado; cena aterradora que tanto se repetira em sua miserável e felizmente breve vida...
... Que parece ter começado na condição de cativo, pelo menos foi assim que o percebi de primeira vez quando varejava em torno de alguns escrotinhos de vida vadia. Devia ter não mais que doze anos, aquela fase em que – por si só – todo garoto experimenta os estorvos da rejeição generalizada...
Contava uma lenda – tão presumida quanto sacana – que o pai, ao vê-lo embalado no colo provisório da mãe, despediu-se de ambos com um volto já, “o tempo de comprar o mucilon”. Qual o problema de nascer feio? Toda criança assim o nasce! Na verdade os bebezinhos possuem, todos, a mesma cara. O padrão estético raramente destoa... Regra supostamente quebrada no caso específico do nosso anti-herói! Pior mesmo, seria para ele, ter vindo a este mundo por uma reprodução polinizada. Com milhões de ventres dispersos pela urbe, que valor teria uma origem rebentada a granel, sem qualquer reconhecimento? Nascer horrendo, será, provavelmente, melhor que anônimo. Feiosos, nasceram grandes intelectuais, maravilhosos artistas, magnânimos cientistas, condição a que chegaram, fatalmente, pelo desprivilegio estético. O drama vivido por Ureínha deveu-se antes a fealdade humana que repugna todo e qualquer espelho.
Quando soube de sua morte suspirei com certo alívio... Ultimamente levava uma existência misérrima, mais desolada que nunca, agora sem a companhia nefasta de seus antigos preceptores. Catava papelões e jornais em troca de um trago salvador. Tantas e por tantas vezes fora embriagado e para os fins mais perversos... Alguns achavam pouco, Ureínha possuía glúteos e coxas um tanto quanto curvilíneos. Sodomizavam-no. Depois surravam-no impiedosamente.
Em sua fase mendiga, perambulava com as canelas abauladas, arroxeadas pela elefantíase. Por vezes pedia-me o auxílio da cachaça com sua bocarra mole e dolente. Os beiços, levemente deslocados para o canto, conferiam-lhe trejeito cínico. O olhar lascivo remanescia. Ambos marcavam uma expressão que me faziam supor a provável causa de tão freqüentes e colossais bofetadas; sempre desferidas contra a honra do rosto. Nenhuma agressão, no entanto, foi capaz de enxotá-lo do espaço que achava ter conquistado no coração daqueles rapazes. Se o corretivo durava mais que de costume, batia em retirada, mas sempre, sempre retornava como um cão sarnento à cata de calor. Nestas horas os rapazes o admitiam e por pouco não lhes davam cafuné. Um carinho bruto, aí sempre! Ora o pescoço era estreitado contra o tórax de algum numa chave de braço, ora apertavam-lhe a valer as imensas e disformes orelhas sacudindo-lhe o crânio convulsivamente. Agora que suas antigas companhias tornaram-se adultas, vagar doente, jovem e esquecido foi tudo que lhe restou.
Por fim, numa noite qualquer, num logradouro desses do inferno, que nos encurrala por todos os cantos, Ureínha, trôpego, fora colhido por um Ômega de placa jamais identificada. Dali, das trevas do mundo, parecia ter partido para seu encontro definitivo comigo que, em vida, nunca o vilipendiara, mas tive, por fina força, que golpeá-lo não uma, mas duas, três... com a perícia de um boxer... quatro, cinco, seis... com certo prazer no horror... sete, oito, nove, incontáveis vezes!... Até que percebesse, finalmente, meu fracasso em deixá-lo inativo, até que inutilmente não conseguisse mais ocultar-me ao seu insistente percalço, até que, por fim, despertasse com o baque surdo de meu terno coração... no quarto ainda escuro.
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