Carlos Vazconcelos e Manuel Casqueiro
“ESSE PROFUNDO SENTIMENTO QUE NUNGUÉM ME ARRANCOU NEM ARRANCARÁ:
MINHA AFRICANIDADE”
Por Silas Falcão
O livro é sociedade. E nele, ações humanas são narradas. Pela
ficção ou não. Muzungu pululu é um livro de memórias tristes e alegres,
nascidas da guerra da libertação de Angola do domínio português. Desde o século
XV até a primeira metade da década de 1970 do século XX, os angolanos sofreram
diariamente as atrocidades das serpentes brancas como eram chamados os
colonizadores portugueses. Manuel do Carmo Rodrigues ou literariamente Manuel
Casqueiro, o comandante guerrilheiro da Guiné-Bissau, empunhou armas e
esperanças por uma Angola livre. E é o homem branco transparente o narrador
deste livro emocionante. As não ficções são ordenadas em Nascimento e conhecimento;
Momentos e acontecimentos; Procedimentos e reconhecimentos. Variáveis são as
situações psicológicas provadas pelo leitor.
Em Carta as crianças de Quisseque, um grupo operacional da guerrilha
aconselha: Não se esqueçam que devemos
ter nos olhos arco-íris e estrelas para iluminar as noites tenebrosas em que
nos enclausuraram nos calabouços da opressão estrangeira. E não se esqueçam:
devemos possuir nas mãos calejadas e feridas, livros. Muitos livros para sermos
sábios, aprendendo e ensinando.
Em Wayaki o que não serviu, a criança africana se nega a servir aos senhores coloniais. Não
se permite ser o pônei manso dos “sinhôrzinhos”. Ele preferiu a morte pelas próprias mãos – o enforcamento no galho mais
alto da árvore - à servidão pelas mãos dos outros. Uma ditadura impõe um
mundo miúdo aos dominados. Um povo, quando humilhado, massacrado se torna miúdo
e outro. E, às vezes, por séculos, como ocorreu a Angola das saudades de Manuel
Casqueiro.
Ler Muzungu pululu, não é fácil. É harmonioso. Mas não é somente
harmonioso. É revoltante. Insurreição que se desorganiza ao infinito em nossas
almas quando lemos, por exemplo, O
valente caçador branco. Incrível como uma realidade surreal nos força a
pensar que as atrocidades humanas são uma ficção. E foi o que me ocorreu lendo
as brutalidades contra a família de Manuel Casqueiro, praticadas pelo
sanguinário valente caçador branco. Mais revoltante é quando o carrasco português
ordena a Casqueiro, ainda criança de olhos esbugalhados diante do terror
cometido: Tu, animalzinho selvagem,
traz-me água e sabão e lava-me os pés!
Uma imagem poética do livro é Carta às crianças de Quisseque: Não
se esqueçam de que devemos ter na mente sempre a unidade e a paz entre nós,
independentemente de idade, etnias, sexo ou cor da pele. Não se esqueçam de ter
em vossos ventres inchados de vermes, a fome das bandeiras dos oprimidos, a voz
enfraquecida dos flagelados da nossa África, cujas fotografias coloridas foram
expostas na capa da revista Time.
Numa guerra não são os mortos que choram.
Quem chora são os que sobrevivem, afirma o narrador. Esta
frase é outra memória sem lua de Muzungu pululu.
Momentos sem cantos e outros com louvores ao céu empoeirado de estrelas se distribuem nas páginas de Muzungu pululu. Exemplos
destas narrativas distintas são Lunualo, foi
embora da aldeia e Cartas aos amigos
que ficaram. Por que Lunualo, que trabalha para si, a família e para os que
não podiam fazê-lo, admirado pelos jovens e exemplo para os velhos, foi embora
da aldeia com um homem de roupa camuflada, mochila e fuzil automático às
costas?
Mariana Marques, na orelha, afirma: Manuel é um poeta que narra.
Encerrando, retorno a viagem literária que fiz a José Eduardo
Agualusa, poeta afro-luso-brasileiro que desconstrói Luter Kink, quando este
anunciou à multidão: Eu tive um sonho.
Agualusa prefere Eu fiz um sonho. E
Manuel Casqueiro, o poeta que narra, em companhia dos guerrilheiros podem
dizer: Nós fizemos um sonho.
*Atendendo a gentil solicitação do Manuel Casqueiro, fiz esta
rápida apresentação.
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