terça-feira, 6 de agosto de 2013

QUANDO O HONORÁVEL SALGUEIRO TOMBOU

 
 
(SEGUNDO A MELODIA MILENAR DO POETA CHINÊS XI LAO DUONG)

 
                                           Manuel Casqueiro

 
                 Tinham-se purificado em regozijo, os homens no rio Yangtzé, suas idades de mérito e pecado sobre eles, quando os dragões de jade expeliram pelas fuças a noite sobre a terra rubra e úbere, os tigres de papel já entocados nas grutas de Lungyen.
                Embebedados pelos líquidos espumosos da cerveja, da música e do amor, percorriam eles, de archotes nas mãos, os campos de cevada, sonhos do imperador T’ai Tsung, para afugentarem as pragas. Estremeceria que nem um caniço o presunçoso Gengis Kan à passagem dessas águias tonitruantes, guardiões da bebida, irmandade de poetas, cavalos de guerra de rasas crinas.
                  Lembra o Mestre Confúcio, à beira desse mesmo rio mil anos atrás que, assim passam todas as coisas!  Certamente, as boas, as ruins, as duvidosas e as que hão de vir.
                  Corrompido, tomado por fora e impregnado por dentro, pelos vapores embriagadores trazidos pelo vento leste, aquele que, traiçoeiro que nem os gatos de Cantão, desce pelas costas da montanha Yugen sobre a planície desprotegida de Ch’inhangtao,o honorável salgueiro, arbusto donairoso de galhos delgados e folhas estreitas, solitário naquele campo existente entre o céu e a terra,deu para  cantar loas desvairadas às paixões sem cura.
                  Ó, como o vento de verão é tão triste! E, com o circunspecto sizo turvado, cantava ele. Sentindo-se forte e feliz tal e qual Wei,o senhor da Tartaruga e da Serpente que vive na lenda para lá de Wuch’ang, cantava o honorável salgueiro. Para, em seguida, passar a cantar, nostálgico, com a língua embaralhada, mas blasfemando afirmativo, com ela solta. Cambaleante sobre a grama, que o vento era forte, caminhava e cantava. Quiseram acalmá-lo os apagados girassóis órfãos do sol, mas o honorável salgueiro apresentava-se-lhes mais valente do que o lendário guerreiro T’ao Yuan-Dong em dia de batalha, mais teimoso que a mais teimosa mula da aldeia de Chiuyi. E de nada valeu o pungente convite amoroso da flor do pessegueiro, já as nuvens sobrevoavam os nove rios e as sete montanhas com quatrocentas espirais para lhes atingir o topo verde.
                   Não podendo desviar-se do destino, o honorável salgueiro pretendeu-se humano, numa vontade instantânea e mágica, para escapulir ao atropelado vozerio dos que vinham sacudir todos os insetos, todo o capim daninho toda a espuma da poeira que empestava o campo sagrado do imperador T’ai Tsung, que,quando as flores da ameixeira brotarem,se transformará num convidativo rio dourado e refrescante.
                   Então,quando as moscas bateram as asas,zumbindo aflitas, e as formigas da alfarrobeira apregoaram a avizinhação dos homens, o honorável salgueiro de suas raízes, inventou umas pernas. Mas, estas, temperamentais em sua carnosidade vegetal, não tinham nem a firmeza nem a certeza daquelas que a natureza dota os homens sóbrios.
                   Imediatamente claudicou, no espaço e no tempo, o venerável salgueiro que tombou desamparado no solo fofo, em sua ilusória fragilidade, com estrépito.
                   No entanto, antes mesmo que os espectros dos lugares sombrios, onde habita a Dor, o levassem desse lugar hibisco alumiado pela lua, acudiram-lhe a Bondade, a Placidez e a Caridade, descidas de seus templos de mármore nas alturas, cruzaram o prateado frio da madrugada e, erguendo-o, levaram-no para um leito de nenúfares perfumados, são e salvo. E, misericordiosos, para que ao nascer do sol o honorável salgueiro não se acabrunhasse ressabiado, do ocorrido, os três míticos seres seus protetores, deram-lhe a graça do esquecimento.
                 Isto sucedeu há muitos e muitos de anos. Já por ali passaram três exércitos imperiais com suas centenas de bandeiras vermelhas desfraldadas.  Outros tantos outonos pesaram sobre as montanhas nevadas de Wumeng,as águas de Chinsha envoltas em névoa continuam cristalinas. Contudo, ainda hoje narram os poetas epopeicos que o honorável salgueiro ao despertar da sua viagem etílica, a despeito de não se recordar de nada, bebeu todo o campo de cevada para se curar da ressaca.

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