(SEGUNDO A
MELODIA MILENAR DO POETA CHINÊS XI LAO DUONG)
Manuel Casqueiro
Embebedados pelos líquidos
espumosos da cerveja, da música e do amor, percorriam eles, de archotes nas
mãos, os campos de cevada, sonhos do imperador T’ai Tsung, para afugentarem as
pragas. Estremeceria que nem um caniço o presunçoso Gengis Kan à passagem
dessas águias tonitruantes, guardiões da bebida, irmandade de poetas, cavalos
de guerra de rasas crinas.
Lembra o Mestre Confúcio, à beira desse mesmo
rio mil anos atrás que, assim passam
todas as coisas! Certamente, as boas,
as ruins, as duvidosas e as que hão de vir.
Corrompido, tomado por fora e
impregnado por dentro, pelos vapores embriagadores trazidos pelo vento leste,
aquele que, traiçoeiro que nem os gatos de Cantão, desce pelas costas da
montanha Yugen sobre a planície desprotegida de Ch’inhangtao,o honorável
salgueiro, arbusto donairoso de galhos delgados e folhas estreitas, solitário
naquele campo existente entre o céu e a terra,deu para cantar loas desvairadas às paixões sem cura.
Ó, como o vento de verão é tão
triste! E, com o circunspecto sizo turvado, cantava ele. Sentindo-se forte e
feliz tal e qual Wei,o senhor da Tartaruga e da Serpente que vive na lenda para
lá de Wuch’ang, cantava o honorável salgueiro. Para, em seguida, passar a cantar,
nostálgico, com a língua embaralhada, mas blasfemando afirmativo, com ela
solta. Cambaleante sobre a grama, que o vento era forte, caminhava e cantava.
Quiseram acalmá-lo os apagados girassóis órfãos do sol, mas o honorável
salgueiro apresentava-se-lhes mais valente do que o lendário guerreiro T’ao
Yuan-Dong em dia de batalha, mais teimoso que a mais teimosa mula da aldeia de
Chiuyi. E de nada valeu o pungente convite amoroso da flor do pessegueiro, já
as nuvens sobrevoavam os nove rios e as sete montanhas com quatrocentas espirais
para lhes atingir o topo verde.
Não podendo desviar-se do destino, o
honorável salgueiro pretendeu-se humano, numa vontade instantânea e mágica,
para escapulir ao atropelado vozerio dos que vinham sacudir todos os insetos, todo
o capim daninho toda a espuma da poeira que empestava o campo sagrado do
imperador T’ai Tsung, que,quando as flores da ameixeira brotarem,se
transformará num convidativo rio dourado e refrescante.
Então,quando as moscas
bateram as asas,zumbindo aflitas, e as formigas da alfarrobeira apregoaram a avizinhação
dos homens, o honorável salgueiro de suas raízes, inventou umas pernas. Mas,
estas, temperamentais em sua carnosidade vegetal, não tinham nem a firmeza nem
a certeza daquelas que a natureza dota os homens sóbrios.
Imediatamente claudicou, no espaço e no tempo,
o venerável salgueiro que tombou desamparado no solo fofo, em sua ilusória
fragilidade, com estrépito.
No entanto, antes mesmo que os espectros dos
lugares sombrios, onde habita a Dor, o levassem desse lugar hibisco alumiado
pela lua, acudiram-lhe a Bondade, a Placidez e a Caridade, descidas de seus
templos de mármore nas alturas, cruzaram o prateado frio da madrugada e, erguendo-o,
levaram-no para um leito de nenúfares perfumados, são e salvo. E,
misericordiosos, para que ao nascer do sol o honorável salgueiro não se
acabrunhasse ressabiado, do ocorrido, os três míticos seres seus protetores, deram-lhe
a graça do esquecimento.
Isto sucedeu há muitos e
muitos de anos. Já por ali passaram três exércitos imperiais com suas centenas
de bandeiras vermelhas desfraldadas. Outros
tantos outonos pesaram sobre as montanhas nevadas de Wumeng,as águas de Chinsha
envoltas em névoa continuam cristalinas. Contudo, ainda hoje narram os poetas epopeicos
que o honorável salgueiro ao despertar da sua viagem etílica, a despeito de não
se recordar de nada, bebeu todo o campo de cevada para se curar da ressaca.
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