Nestes primeiros dias de agosto, o
Theatro José de Alencar teve mais uma estreia histórica. O duelo, da
Mundana Companhia, pressagiava – aos que já conheciam o seu O idiota,
encenado aqui há três anos a partir do romance de Dostoiévski – um espetáculo a
transcender o mundo russo. A novela de Tchekhov inspirou novas intervenções
físicas no Theatro: prolongou-se o palco principal com um tablado, e algumas
frisas foram aproveitadas pelos atores. Restringiu-se, necessariamente, o
tamanho do público – e, se O idiota teve pretensões mais amplas, de
tempo e utilização de espaço (muitas horas de peça, com atuação no território
da plateia, no pátio, no foyer e nos jardins do Theatro), O duelo se
firma como um trabalho igualmente complexo, daqueles que a gente se orgulha de
dizer: “Eu estive lá, eu vi.”
Não por acaso, o laboratório da peça foi feito no sertão do Ceará. O calor do
Cáucaso – elemento que circunda o enredo e ajuda a indispor Laiévski contra
Nadiejda – se espelha na nossa vivência nordestina. Com este mergulho os atores
resgatam as lições da alma, os duelos íntimos e dilaceramentos típicos da
literatura russa, mas universalizando o seu poder. Não seria arriscado dizer
que em alguns momentos o próprio rosto cearense de Aury Porto assume a rudeza
eslava (escrava, como o quis a etimologia), no reflexo dos comportamentos
condenáveis, dos conflitos morais que o personagem Von Koren aponta em
Laiévski.
O humanismo de Tchekhov se conserva em texto e cultura, admitindo uma costura
com elementos ecléticos. Encontramos no espetáculo momentos de ópera, balé,
ritmos latinos, referências à moderna presença das luzes de “bichos
unicelulares”, fosforescendo no mar da plateia, menção a Antônio Conselheiro… E
um dos momentos mais comoventes é quando se retrata a tempestade na praia: no proscênio,
os atores esticam panos com a exata postura dos jangadeiros na obra de Raimundo
Cela ou de Chico Albuquerque.
A interpretação de cada personagem é inesquecível. Camila Pitanga exibe
versatilidade e destreza na pele da fútil e febril Nadiejda. Carol Badra é uma
excelente Mária Bitiugova, equilibrando os limites da dignidade e da
caricatura, como o seu papel exige. O médico Samóilenko ganha espontaneidade
com Vanderlei Bernardino; Sergio Siviero se transmuta em fantasma e Kirílin da
maneira mais convincente. Guilherme Calzavara e Fredy Állan dominam a proposta
de Atchmiánov e do Diácono Pobêdov, respectivamente. Aury Porto, bem mais
sofrido que o príncipe Míchkin, d’O idiota, parece, entretanto, trazer
deste personagem a carga de inocência para a salvação, no final da peça.
O duelo também se realiza de maneira inteiramente feliz em luz, figurino
e sonoplastia. As soluções cênicas para fazer o mar, o vento ou a chuva trazem
a sensação de um rito mágico, ao mesmo tempo teatral, sertanejo e trágico. Como
no desfecho da novela de Tchekhov, todas as divergências se conciliam em
síntese; e a arte da Mundana Companhia, sob a ótima direção de Georgette Fadel,
transmuta dor em vivacidade.
Tércia Montenegro (artigo publicado no caderno Vida & Arte
de hoje)
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