terça-feira, 6 de agosto de 2013

O CALOR DO CÁUCASO



 
 
             Nestes primeiros dias de agosto, o Theatro José de Alencar teve mais uma estreia histórica. O duelo, da Mundana Companhia, pressagiava – aos que já conheciam o seu O idiota, encenado aqui há três anos a partir do romance de Dostoiévski – um espetáculo a transcender o mundo russo. A novela de Tchekhov inspirou novas intervenções físicas no Theatro: prolongou-se o palco principal com um tablado, e algumas frisas foram aproveitadas pelos atores. Restringiu-se, necessariamente, o tamanho do público – e, se O idiota teve pretensões mais amplas, de tempo e utilização de espaço (muitas horas de peça, com atuação no território da plateia, no pátio, no foyer e nos jardins do Theatro), O duelo se firma como um trabalho igualmente complexo, daqueles que a gente se orgulha de dizer: “Eu estive lá, eu vi.”

             Não por acaso, o laboratório da peça foi feito no sertão do Ceará. O calor do Cáucaso – elemento que circunda o enredo e ajuda a indispor Laiévski contra Nadiejda – se espelha na nossa vivência nordestina. Com este mergulho os atores resgatam as lições da alma, os duelos íntimos e dilaceramentos típicos da literatura russa, mas universalizando o seu poder. Não seria arriscado dizer que em alguns momentos o próprio rosto cearense de Aury Porto assume a rudeza eslava (escrava, como o quis a etimologia), no reflexo dos comportamentos condenáveis, dos conflitos morais que o personagem Von Koren aponta em Laiévski.

            O humanismo de Tchekhov se conserva em texto e cultura, admitindo uma costura com elementos ecléticos. Encontramos no espetáculo momentos de ópera, balé, ritmos latinos, referências à moderna presença das luzes de “bichos unicelulares”, fosforescendo no mar da plateia, menção a Antônio Conselheiro… E um dos momentos mais comoventes é quando se retrata a tempestade na praia: no proscênio, os atores esticam panos com a exata postura dos jangadeiros na obra de Raimundo Cela ou de Chico Albuquerque.

            A interpretação de cada personagem é inesquecível. Camila Pitanga exibe versatilidade e destreza na pele da fútil e febril Nadiejda. Carol Badra é uma excelente Mária Bitiugova, equilibrando os limites da dignidade e da caricatura, como o seu papel exige. O médico Samóilenko ganha espontaneidade com Vanderlei Bernardino; Sergio Siviero se transmuta em fantasma e Kirílin da maneira mais convincente. Guilherme Calzavara e Fredy Állan dominam a proposta de Atchmiánov e do Diácono Pobêdov, respectivamente. Aury Porto, bem mais sofrido que o príncipe Míchkin, d’O idiota, parece, entretanto, trazer deste personagem a carga de inocência para a salvação, no final da peça.

            O duelo também se realiza de maneira inteiramente feliz em luz, figurino e sonoplastia. As soluções cênicas para fazer o mar, o vento ou a chuva trazem a sensação de um rito mágico, ao mesmo tempo teatral, sertanejo e trágico. Como no desfecho da novela de Tchekhov, todas as divergências se conciliam em síntese; e a arte da Mundana Companhia, sob a ótima direção de Georgette Fadel, transmuta dor em vivacidade.

 

Tércia Montenegro (artigo publicado no caderno Vida & Arte de hoje)
 
 

 

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