Memórias sonhadas
Pedro Salgueiro, Jornal O Povo
Quando li Muzungo Pululu: homem branco
transparente, do guineense radicado no Ceará, Manuel Casqueiro, fiquei tão
impressionado que saltei imediatamente da última página para a primeira: o
livro – misto de memória e ficção (que, a meu ver, andam sempre, ou quase, de
mãos dadas) – exigia uma leitura mais apurada, de leitor que não quer saber
apenas da história contada, mas dos detalhes escondidos – dos, pedantemente
digamos, subterrâneos da escrita. Reli com “olhos frios” e descobri, além do
poderoso contador de histórias vividas, um fino estilista, que buscou linha a
linha, texto a texto, a forma literária mais propícia para narrá-las.
E essas lembranças transfiguradas pela arte,
pela sensibilidade de poeta (a escritora Mariana Marques, na “orelha” de seu primeiro
livro, bem afirma que “Manuel é um poeta que narra”) e – principalmente – pela
saudade são o que de melhor nos apresenta esse cearense por adoção (o que,
devido a essa opção própria, torna mais importante sua cearensidade).
Quem vê esse “gigante gentil” desfilando
desengonçadamente por nossas ruas não imagina as tantas aventuras que ele já
viveu, desde o bairro natal Chão de Papel, em Bissau (capital da Guiné-Bissau),
passando pelas guerrilhas de libertação de Angola (ganhos e perdas de amores e amigos,
de vitórias e decepções) até chegar finalmente em terras brasileiras (e
precisamente em “terras alencarinas”, quando antes de Fortaleza ele
“perambulou” pelo núcleo progressista do saudoso Dom Fragoso: a Crateús das
Ligas Camponesas e da Educação Eclesial de Base, durante a famigerada Ditadura
Militar implantada no Brasil em 1964).
Neste novo A Lança de Nzambi é como se ele
continuasse a nos contar sua vida (e por extensão a de todos os que conviveram
com ele), a descrever suas viagens interiores e exteriores; como se apenas
perseverasse em seguir as intuitivas sugestões de seu pai, que (parecendo
adivinhar que seria ele afinal quem contaria as aventuras da família) lhe deu
na infância uma “Caneta Parker 21, preta com tampa dourada, mais 100 folhas de
papel almaço pautado”.
Mas se no livro de estreia Casqueiro já
alternava suas reminiscências públicas (sobressaindo-se estas, porém) com as
privadas, neste novo volume de narrativas, as lembranças de criança e de adulto
se condensam, se misturam, assim como o cotidiano atual se entrelaça com o poço
fundo de suas tão saudosas recordações. E essas “memórias sonhadas” trazem
ainda o tempero – o sabor meio estranho – de certas expressões das ex-colônias
portuguesas da África, dessa mistura também tão nossa, que fomos igualmente
fruto de diversas combinações genéticas, culturais...
O estilo sóbrio de contos de fadas parece ter
sido corretamente escolhido pelo autor, como se ele tivesse buscado certo “tom
neutro” que combinasse com seu jeito manso, simpático e discreto de viver sua
vida de exilado saudoso – que, através de sua arte do bem contar (como os
ancestrais narradores de velhas fábulas ao redor das fogueiras), vai nos
encantando a cada página. E o que é mais louvável para um escritor: deixa ao
final da leitura uma sensação de insaciedade, um desejo de quero mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário