Crônica
SopÓpera: Crônica Poemarcelo Bittencourt
Raymundo Netto especial para O POVO/ 05/11/2010
Nasce o poeta à luz de um dia, extraído de gomos de nuvens, forjado em flandres, coração cerzido por cantos de anjos. Vem ao mundo na cangalha de vento, ao caminhar lento de quem nada espera do desperdício das horas que se arrastam pela vida afora num sopro fresco a tremular a cortina fina da janela, a revelar a parede caiada, branca fumaça, tal qual folha sem graça de papel sem rastros de versos.
Ainda menino, sente-lhe cair ao colo a étima poesia. Descontem-se os sentimentos que afloram e afaunam a sua apatia. Como fora luz a mostrar palmo de língua a si mesma, insaita: a poesia não está na palavra, pois que esta é larva; a poesia é não mais que sim, é você antes de mim, é mais antipoesia que poesia e se respira no quintal, na grama verde, no sorriso da criança que comove e se rende à esperança, e, finalmente, a poesia não é a cara do poeta, mas do mundo, e o mundo uma sombra que vaga no fundo de seu olhar.
O néscio, cuja fronte suada é cingida pelos louros do ideal, opta pela vereda anárquica original, musa da loucura melódica a flutuar na monocórdica mansidão do mundo ao som profundo dos estertores de seu peito magro e punho. Mal sabe ter elegido, como destino de vida, um reles rascunho.
Ordena-se, então, com pompas de herói marginal, por meio do sonho o poeta sem igual e, desdentão, pôe-se a dançar com os demônios, a rir-se e a se rir, à socapa, com eles, a vender-lhes por nada a alma, a deitar em sua lama, em sua cama, a coçar-lhes as feridas às costas, a provar-lhes o fel da amargura e dissabor, a transformar todo o infortúnio desta orbe em amor.
Carrega assim, vida sem fim, na aflição da alma lunar, todas as madrugadas, por travesseiros as calçadas e a própria febre como cobertor. Colhe no ar cada palavra e a semeia com a dura doçura de esteta e palavrador, aquarelas palavras que espinham-lhe a garganta, que cortam-lhe os dedos e que alfinetam o pensamento ensimesmado. O fio de ideias que escapam-lhe o novelo, a embaraçar os cabelos, a enrugar-lhe a testa que, em festa, comemora seu verso engrolado.
O poeta não o sabe — há quem lhes diga —, mas carrega entranhado em si a dor de todos e a ela suporta com olhos lacrimosos no decotar do peito arfante da mulher da rua, no meio-fio frio nas noites de luar, na urina que escapa-lhe ainda quente à parede do bar, na volúpia da anca pública, na morte anunciada em seu olhar. E descreve sua poesia com letras da fome, sabendo que as fomes maiores vêm da agonia dos que nada tem, pois que se-lhes é arrancado todos os dias pelos insaciáveis tubarões do Congresso que as mantêm.
Dói... Ah, como lhe dói a marcha vida. A ele, e somente a ele, o mundo impõe o exílio, e este, sem auxílio, pode estar aqui, em meio de todos, no escárnio, no deboche de quem lhe diz: Doido! Maluco! Abestado!
O poeta, sim, sem enfado, sabe, mas não acredita que sabe tudo, pois tudo às suas vistas é imensidão, é indecifrável, é beleza. Ao contrário dos homens doutos que em sua vileza dizem saber tudo, pois conseguem ir e vir da esquina; e tem dinheiro para comprar a esquina, ou aquela que encosta-se a seu poste ou na feira, mas que não vê que nunca a possuirá inteira...
O poeta deitado em seu quarto, coxas à barriga, morre todos os dias e sonha para esquecer a vida. Veem-no e o dizem preguiçoso, dorminhoco, um pastor com sobrosso de um louco, em querelas de mesa de bar: “Poetas, vagabundos a vaguear!”
Cinzas ilusões, cinzéis de emoções, antes da garganta sufocar e seu corpo, em balanço, pendular, molha para trás os cabelos. A barba negligente, pela última vez, coça. Lê mais um verso do “maldito” e adoça o último orvalhar de sua face
Ao poeta desconhecido, a sepultura forrada com borboletas, a sarjeta pessoal, a mesa posta em mistérios de um universo estrelado de lantejoulas, entre folhas de papel crepom luzidias e amargas balas de celofane. Quando suas palavras quedam entre as fagulhas do seu poema, diluem-se, estalam-se e viram vidro, caneta, papel e incompreensão. Da taça que bebes, ó poeta, entornas do seu verso, em semente, a solidão.
Raymundo Netto num minuto de silêncio poético.
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