sexta-feira, 26 de agosto de 2011

                                A Emoção de um Premiado


                        

Quando o telefone tocou, Carlos Vazconcelos imaginou que fosse um novo pedido. Estava acomodado em seu birô no pequeno escritório da bomboniere, cercado de pilhas de embalagens de chocolates, pirulitos, balas de todos os gostos e de todas as cores, no meio daquele cheiro bom de tutti-frutti, aproveitando também o hiato de tempo sem fregueses para pôr em dia as leituras. 
Carlos Vazconcelos, graduado em Letras, professor de Português, pensou em melhorar sua renda, aquele dinheirinho curto do magistério, instalando um pequeno comércio de bombons num ponto do quadrilátero da praça do Mercado São Sebastião, no fervilhante bairro do Otávio Bonfim.
Estamos no segundo semestre de 2007. Sua lojinha tem apurado que fica muito aquém das esperanças que o animavam quando se propôs a cultivar aquela atividade paralela, um ganho extra para completar a receita familiar.
Com sua imaginação de ficcionista e nefelibata inveterado, chegou a sonhar com prosperidade exuberante, quem sabe um supermercado ou mesmo uma rede deles, a competir com os grandes e a se espalhar pelo país inteiro, um império mercantil empregando milhares de brasileiros e patrocinando atividades culturais. Depois viu que aquela não era a sua praia. As vendas eram acanhadas e os lucros ridículos, depois do pagamento dos encargos, fretes, impostos, energia e telefone. Decididamente, não iria ficar rico e o mais certo seria desistir daquilo, repassar o ponto e multiplicar sua carga horária nas salas de aula, porque, agora sabia, ensinar fora a arte que Deus lhe dera e onde deveria ganhar o pão.
Desde menino sentia que estava destinado às letras. Lá no Tianguá, onde nascera, pegou fama de devorador de livros. Na cidade serrana, do vigário ao juiz, todos sabiam que o menino Bebeto iria ser professor e possivelmente um escritor. Quando visitava a biblioteca municipal, murmurava para o seu coração: um dia estas prateleiras vão ter os meus livros, contos e romance de minha autoria... e via, no seu sonho de menino, o dorso dos volumes com o seu nome impresso: Carlos Roberto Vazconcelos. A Serra Grande já dera ao Brasil grandes escritores. Viçosa, o Clóvis Beviláqua; São Benedito, o filósofo Farias Brito; Ubajara, o Raimundo Magalhães Júnior... O clima frio da serra ativava a criatividade.
Quando veio para Fortaleza sabia que estava dando linha para seu destino.
Concluiu o curso secundário, foi aprovado no vestibular e, bacharel em Letras, passou a dar aulas. Uma coisa que sempre fez foi escrever. Sempre gostou de rascunhar as idéias que lhe passam pela mente e, revivendo velhas histórias do torrão natal, armar contos com a técnica que aprendeu na faculdade. É um narrador, um bom contador de histórias.
Agora está ali, no calor da tarde, mal acomodado na função de pequeno comerciante, quando toca o telefone. Do outro lado da linha a voz feminina se identifica. É a escritora Regina Fiúza, diretora administrativa da Academia Cearense de Letras, que quer lhe comunicar que ele, o professor Carlos Roberto Vazconcelos, que concorrera com o pseudônimo de Kalil Kaleb, ganhara o Prêmio Osmundo Pontes 2007, categoria contos (O outro vencedor foi o poeta José Telles, na categoria poesia, com a obra Silhueta).
A notícia o engasgou momentaneamente. Era o entalo da emoção. Respondeu, quando pôde, que se sentia muito feliz por ganhar aquele prêmio, pela importância que representava e por saber que seu livro Mundo dos Vivos fora avaliado e distinguido por uma plêiade de intelectuais da melhor monta. Sabendo, outrossim, que concorrera com dezenas de outros trabalhos, alguns até de autores consagrados, e, mesmo assim, havia conseguido o primeiro lugar.
Naquele momento foi arrebatado pelas lembranças de seus sonhos da infância e parecia que o frio da serra, aquele vento gelado da Ibiapaba, lhe tomava o estômago, provocando uma espécie de vertigem. Num círculo enevoado nas imagens que passavam diante dele, viu o pai, a mãe, as tias, os irmãos, as crianças colhendo mangas e pitombas nos Taquari, os vendedores de doce de jaca nas barracas da saída da cidade, o padre Tibúrcio e o bispo Dom Timóteo celebrando a Semana Santa, Das Dores, a lavadeira, e a dona Beta das broas... todos sorrindo e aplaudindo o desempenho do garoto Bebeto, o filho de seu Albercy e da Dona Nadir, que virara escritor na capital e agora estava ganhando prêmios, feito um danado da literatura.
A noite o encontrou naquele inebriante estado de felicidade, vivendo uma alegria inusitada. Já ganhara outro prêmio literário no ano anterior. Mas o Prêmio Osmundo Pontes era outra coisa, uma verdadeira consagração. Estaria agora fazendo companhia a sumidades da literatura cearense que o haviam antecedido naquela importante premiação. Gente do porte de Costa Matos, Natércia Campos, Batista de Lima, Luciano Maia, Carlos Augusto Viana, Tércia Montenegro e Pedro Salgueiro, dentre outros ilustres.
Naquela noite insone viu o filme do passado e praticou a projeção da noite da entrega do prêmio para os próximos dias, a festa esplêndida no hotel Gran Marquise, anfitrionada por dona Cibely Pontes, todos aqueles convidados, os discursos, os aplausos...
Tempos depois, declarava num depoimento comovido: “Considero o Prêmio Osmundo Pontes um divisor de águas na minha carreira literária, pelo alto conceito que desfruta entre os escritores do Ceará e do país. O Prêmio Osmundo Pontes é o Nobel cearense.”


LEITÃO, Juarez. Panateneias: a história do prêmio Osmundo Pontes. Fortaleza: Premius Editora, 2009, p. 17 a 23.


quinta-feira, 25 de agosto de 2011



                         Todos os Caminhos Levam à Paris


Por Brennand de Sousa


...É a realização de um sonho, compreende senhorita?...
Desde rapazote sinto uma atração inexplicável pela Europa, pela França particularmente... Coisa curiosa mesmo... Assim... Como se já conhecesse tudo aquilo... A Catedral de Notre Dame, Versalhes e seus jardins perfeitamente geométricos... O Louvre com sua multidão de janelas... Tudo me é familiar, até aquela pirâmide transparente que recentemente fincaram em frente ao museu... O Sena, por exemplo, é como se já houvesse percorrido aquelas margens pavimentadas à exaustão, tal é a intimidade com a paisagem. Às vezes chego a sentir os ares, o perfume das árvores da Champs Elisèe. A Torre Eiffel!!! Nem conto o quanto já subi ao seu mirante... Os cafés parisienses! Saudade que sinto só de apreciar as mesinhas estendidas sobre as calçadas generosas. Olho pra um café daqueles e não consigo optar... Todos me são prediletos.

Um amigo espírita garantiu-me que é coisa de reencarnação... Reencarnação, a senhorita já ouviu falar, pois não? Vai saber...

Meu caçula vive lá, no lugar que sempre almejei. Quando partiu atrás de trabalho, um pouco de mim foi ter com ele. Era como se parte de minhas pernas perambulasse pelos bulevares parisienses, como se uma nesga de meus cansados olhos presenciasse uma luz que me é tão íntima... E cá estou eu, realizando o sonho de toda uma vida.

E a senhorita... Onde vai? Paris também? Ahhh ... Também! Que maravilha!

Será que vamos na mesma companhia? ...? ...? Qual? Air France? Ahhh... Minha empresa é outra!

Desculpe-me a intromissão... Mexe com o que, a senhorita? Ahhh... Pesquisadora !? Interessante!

Sou alfaiate aposentado. Meu caçula é quase isso, ou melhor, mais que isso... Dizem que estilista é um alfaiate metido à besta... A senhora sabe, nossa profissão foi praticamente extinta pelo prêt-à-porter!!! Por lá, a moda é forte! Meu rapaz sempre teve facilidade para o desenho... Tem mão, cabeça de artista... Ambição, coisa que nunca tive... A não ser essa que ora vos confesso!

A senhorita não está ansiosa? Sei... sei, compreendo! Sorte sua, viajar com tal frequência! Eu pelo menos estou! Voei pela última vez na década de sessenta. Fui entregar cinco ternos de casamento na cidade de Santos. Lembra dos turbo-hélices? Claro que não, vê-se que a senhorita não tem trinta anos! Hoje as máquinas são bem mais seguras, pilotam-se praticamente sozinhas, o problema é depois que soltam do chão! Aí ficamos ao sabor de Deus!

Tenho meus receios com aviação, é que sempre disse pra mim mesmo que não morreria feliz sem visitar a França... Não pense que é só Paris que me atrai.  A Bretanha, a Normandia, o Loire, as regiões vinícolas...

 A mim só me falta pisar!

E a senhorita... Casada? Ahhh... Claro senhorita, desculpe-me, não a incomodo mais... Desculpe-me... Sinceramente! Que velho inoportuno! Perdoe-me, é que estou um pouco ansioso... É a realização de um sonho, compreende?! Estou que não me agüento!

Olha aí! Ouviu? Não é o vôo da senhorita? ...? ...? Escute, chamou novamente!

Foi um prazer conhecê-la e vá perdoando este velho xereta! Faça boa viajem, seja bem feliz!

Adeus, moça! Adeus!  

Tão novinha... Em Paris! Aahhh!...

quarta-feira, 24 de agosto de 2011


Gustavo Barroso:
da Memória Individual à Memória Coletiva

Pesquisador: Prof. Ms. Aglailson Lopes

Enviada por Bernivaldo Carneiro

            O trabalho com a linguagem escrita é uma das grandes virtudes do ser humano. Através dela podem-se conhecer segmentos diversos, sejam de ordem social, política, econômica, filosófica, religiosa, artística, histórica, ou seja, em tudo onde o ser humano esteja inserido. Através do idioma se conhece a identidade de um povo. A língua é a apresentação desse povo. E a língua de forma escrita é, pois, registro histórico e literário de toda uma sociedade, tornando-se, assim, para além da estética, um elemento de coesão social, conforme nos esclarece Cristina Costa: “Fator de coesão social, a língua permite não só a identidade entre pessoas como a facilidade de comunicação. Além disso, não mais se duvida que ao idioma corresponda uma determinada estrutura mental e cognitiva. Assim, aqueles que compartilham uma língua compartilham também uma mesma forma de perceber, organizar e dar sentido à realidade vivida.” (Costa, 1998, p. 62). E quando se motiva o idioma, tornando-o uma ferramenta indispensável à produção literária, podemos concluir que o texto produzido, a partir de estímulos semânticos, ganha uma dimensão cultural que extrapola toda e qualquer tentativa de engajamento estético, histórico ou literário.

            Adentrando a um quesito historiográfico, Jacques Rancière pontua que o registro por escrito da história deve seguir a uma ordem que contemple não apenas a história erudita, ou cartesiana, objetiva, sem relações paradigmáticas com outras áreas do conhecimento, mas também outros segmentos que, direta ou indiretamente, estejam associados a várias linhas de vertente histórica, como bem se observa nesta breve e objetiva sentença: “O que determina a vida dos seres falantes, tanto quanto e mais que o peso do trabalho e de sua remuneração é o peso dos nomes ou de sua ausência, o peso das palavras ditas e escritas, lidas e ouvidas, um peso tão material quanto qualquer outro.” (Racière, 1994, p. 102). Daí a nossa intenção de atrelar vertentes variadas, mas com propósitos afins, como bem se dispõem história e literatura, na obra memorialística e ficcional de Gustavo Barroso, mas não tanto ficcional, conforme se observa na nota de advertência em Mississipi, último romance do escritor cearense: “Os personagens deste romance saíram da vida real, de modo que a semelhança de qualquer um deles com personagens de ficção não passa de mera coincidência acidental. As pessoas que se julgarem por este ou aquele motivo retratadas nas páginas deste livro não se devem sentir ofendidas, porque, se isto se deu, é que enterraram uma carapuça até as orelhas. A culpa, portanto, não será do autor, mas delas mesmas.” (Barroso, 1996, p.5).

              O nosso trabalho sobre Barroso elege a linguagem escrita e literária como a sua mais importante fonte, uma vez que as conquistas humanas, nas mais diversas áreas, foram e são registradas por escrito(s). Um exemplo disso foi a adoção da escrita como linguagem essencial feita pela Europa Moderna, o que mais uma vez recorremos à socióloga anteriormente citada. “Por sua vez, a Europa Moderna elegeu a escrita como linguagem por excelência. Era a escrita que instaurava realidades, definia relações e documentava os acontecimentos. Daí o caráter científico e histórico da interpretação de documentos, esses textos capazes de fazer valer direitos, de instruir conjunturas e legitimá-las. Assim, a tradução dos textos escritos se tornou elemento fundamental para as relações interculturais e internacionais.” (Costa, 1998, p. 63). Essa linguagem ganha dimensão historiográfica quando o seu artífice se preocupa em torná-la um veículo de conscientização e formação humanísticas. Isso pode ser exemplificado com os textos de caráter histórico-literários muito trabalhados em nossa literatura a partir da segunda metade do século XIX, primeiras décadas do século XX e estendendo-se até os nossos dias. Esses textos nos servem de fontes, logo que se incide sobre eles a denominação de literatura de hibridismo memorial, expressão cunhada por nós, quando passamos a conhecer os escritos de Gustavo Barroso.

Os textos memorialísticos e ficcionais do autor cearense atestam as variadas vertentes que podem ser destacadas em um autor de nome e de gênio que, por uma injustiça histórica, foi cassado de forma stalinista por alguns estudiosos de nossa crítica literária. Aqui podemos estabelecer uma crítica da crítica, algo tão comum em nossos tempos. Em que se fundamentaram os doutos que jogaram o nome de Barroso ao quase ostracismo? Não o foi por conta dos serviços prestados pelo autor à memória, cultura e história brasileiras. Mas ainda se trata de um problema a ser resolvido, resgatar a importância da escrita de Gustavo Barroso na história da literatura de nosso país, quiçá universal, dada a grande formação intelectual, cultural, histórica e literária inerente a este autor. Ele trafega por diversas sentenças textuais, é um nome que produziu textos em diferentes modalidades de teor literário ou crítico, como bem se mostra explícita e enfaticamente na seguinte declaração de Eduardo Campos, ao apresentar o romance Mississipi: “Romancista, historiador, contista, cronista, poeta, folclorista, ensaísta, memorialista, Gustavo Barroso foi um dos mais fecundos escritores brasileiros. Com o seu polimórfico poder de criação, praticou por assim dizer todos os gêneros.” (Barroso, 1996).  Com estas palavras de Eduardo Campos, não é exagero se afirmarmos a proximidade do autor cearense, no que diz respeito ao que produziu, com Machado de Assis, uma vez que ambos produziram textos em vários gêneros literários e não-literários. E essa proximidade se acentua com a presença da ironia de verve cômica e sarcástica, na qual Gustavo Barroso nos permite conhecer o seu pendor de estimular palavras, como mencionado anteriormente na passagem do romance Mississipi (Barroso, 1996, p.5).

            Ao tomar mão de uma linguagem que beira a genialidade, Barroso alia tendências estéticas e artísticas, explicitando um apuro sensorial - que bem poucos têm no idioma camoniano - justificado por esta passagem das memórias: “A tentação da vadiagem era muito grande e se multiplicava deliciosamente em outras tentações, como a luz se reflete em cambiantes nas facetas polidas dum cristal. Dificílimo evitá-las na encantadora Fortaleza do meu tempo de menino. Banhos no reservatório do Pajeú e no açudeco do Padre Pedro, onde a água ficava gelada sob as alfombras boiantes dos aguapés. Banhos de mar com mergulhos sob as vagas verdes e descabeladas no Pocinho da Praia. Pescarias de pitus nos riachos. Excursões alegres aos cajueirais da Aldeota. Passeios de bonde a Porangaba. Durante todo o ano uma sucessão de tentações.” (Barroso, 2000, vol. I, p. 24). Nesta sentença se observam tanto expedientes irônicos quanto apelos sensoriais, explicitando, a partir de descrições, um jogo simbólico bem definido, uma quase pintura com palavras é algo que podemos afirmar deste trecho.

            A produção de Gustavo Barroso, seja literária ou não, trafega pelos mais diversos gêneros textuais que possibilitaram a dilatação de sua obra. Seus escritos reúnem diversas formas literárias onde se destacam as suas memórias da infância à maturidade. A sua infância, apresentada de forma saudosista e cheia de expedientes poéticos, remonta ao passado dos primeiros anos de escola de Barroso. A sua precisão literária fornece ao leitor desses textos uma visão para além das questões individuais. O leitor por vezes é deparado não mais com as questões de cunho pessoal, mas com algo que se associa à memória coletiva do local de origem do menino, muito bem esboçada, a partir de outros textos memorialísticos do autor.

A sua cosmovisão trafega pelo mar e o sertão com a mesma maestria, observando-se os costumes e as raízes de seu povo. Aqui temos o ponto alto de sua produção onde se centraliza o gênio deste cronista de matéria variada. Barroso pinta o interior e o exterior tal um impressionista angustiado para mostrar ao mundo o seu valor e o de sua gente, isso pode ser justificado com a passagem de seu livro primeiro de memórias anteriormente transcrita. Podemos também recorrer à pesquisa e tese de doutoramento de José Leite Oliveira Júnior, ao destacar Uspênski, para assegurar este aspecto na produção do autor de Mississipi: “Observando-se em paralelo a literatura e a pintura, pode-se estabelecer uma relação analógica, por exemplo, entre a marcação da continuidade e da descontinuidade sugerida pelo tema (início e fim do texto) como moldura, a disposição e o paralelismo como o ritmo, a narratividade e a progressão como perspectiva, a descrição e a referenciação como iconicidade etc., pelo que existe de isomorfismo entre formas culturais distintas.” (Oliveira Júnior, 2010, pp. 64-5). Não queremos dizer que o pesquisador tenha em mente os escritos de Gustavo Barroso, mas cabe perfeitamente à obra deste autor. Neste segmento por escrito de José Leite, se verifica, dentre outros aspectos, a aliança entre o texto e a pintura, num pictórico que se expande e ganha contornos de ambiguidade estética, ou seja, a obra trafega tanto pela literatura quanto pela pintura, e isso está patente na produção memorialística e ficcionista de Gustavo Barroso, pois o autor também era um excelente desenhista e pintor de caricaturas, mas, em a sua obra memorialística, Barroso só usa de caricatura para os seres considerados de importância à espécie humana. Ele apurava o olhar crítico e irônico no trato com pessoas cujo espírito, por ele, não merecia credibilidade alguma. Logo a sua observação para traçar o perfil do indivíduo trafegava em duas mãos diametralmente opostas, numa fina ironia que ganha contornos estéticos.

            No tocante a sua adolescência, podemos destacar o viés revolucionário que sai do Liceu para ganhar o mundo. A escola de sua vida é o Colégio do Ceará, onde se inscreveu no 1º ano “do que então se chamava Curso Integral, depois de Madureza, e que durava seis anos” (Barroso, 2000, vol. I, p. 19). Essa escola lhe serviu como uma medição do mundo, isto é, nesse período o jovem começa a esboçar o que lhe mais era pertinente, desenvolve, por assim dizer, o seu senso crítico, e com ele colhe bons frutos, mas também as desavenças que conquistou ao denunciar os vícios políticos de seu estado natal. Desaforado, alguns diziam, no entanto Gustavo Barroso era o que pensava, a sua esperteza não vinha de casa, dos velhos ensinamentos de suas tias paternas, mas do mundo que o circundava, e ele fazia questão de ser um protagonista, não um coadjuvante qualquer. A sua astúcia era de um indivíduo que nascera para conquistas de altíssimo grau, o que se comprovou nas suas letras, sejam elas literárias ou não. Nelas Gustavo Barroso se deixa envolver pelo sentimento do mundo, ora o sertão, ora o mar, ora a vida como um todo. Ele mescla, amalgama, hibridifica, retoma valores que pareciam não mais existir. Inova, transforma, reforma o trabalho literário como que desenhasse ou pintasse uma cena, um personagem, ou ele mesmo. Apresenta, pinta e foca um lugar, o seu lugar, o seu espaço, de onde avisava aos desavisados que viver é bom, e todos os valores devem ser respeitados, mesmo que isso não fosse conveniente aos mais céticos. Nessa questão é oportuna a sentença de que Gustavo Barroso parte de uma memória individual e a transforma numa memória coletiva, algo que nos remete a esta sentença do poeta cearense Francisco Carvalho: “As memórias de um homem público, principalmente quando ele exerceu papel decisivo na transformação da sociedade ou do contexto sócio-cultural em que desenvolveu as suas atividades, adquirem uma importância e um significado que transcendem de muito a esfera da pura subjetividade”. (Carvalho, 1995, p.12). Portanto, considerando-se esse homem, elencado pelo poeta, bem próximo a Gustavo Barroso, no que diz respeito ao seu valor social, podemos inferir que as memórias de Barroso saem de um espaço interno, subjetivo e pessoal, para adentrarem ao âmbito da memória coletiva, e isso pode ser observado nos três volumes de suas memórias.

            A vida literária deste autor é por demais rica, estética, histórica e politicamente, mas não se deve tomar o aspecto político como o único valor atrelado ao escritor cearense. Sabemos que ele existe, e Barroso sofreu por conta disso. E toda essa perseguição ao escritor tem um nome, prejulgamento, julga-se antes de se ter um juízo racional. Mas também podemos chamar de preconceito, isto é, por seus apupos nacionalistas, Barroso foi condenado ao ostracismo literário pela grande crítica nacional. A política e os seus engajamentos passam longe da maestria com que conduziu a sua pena, por isto não se pode julgar Gustavo Barroso a partir do viés político, mas do seu valor literário e histórico, que trafega pelas suas memórias até atingir a memória coletiva de seu território. Se julgarmos outros autores com a mesma medida que alguns críticos julgam Barroso, podemos afirmar que nomes como Fernando Pessoa, que tinha simpatias pelo salazarismo, segundo O. C. Louzada Filho, jamais seria reconhecido como o poeta que é: “Um homem de direita, em cuja obra poética possam estar presentes componentes irracionais cultuados pelo fascismo salazarista, (...). De início, é preciso deixar claro: Pessoa nunca chegou aos limites atingidos por alguns colegas seus. O romancista norueguês Knut Hamsun, por exemplo, era nazista e chegou a colaborar com os invasores de seu país. O poeta Ezra Pound chegava a pregar o antissemitismo em seus poemas e definia Mussolini em transmissões radiofônicas durante a Segura Guerra.” (Filho, 1978). Portanto o viés ideológico não deve medir a genialidade literária de qualquer autor ou autora, e Barroso - tal Pessoa - nunca chegou aos limites do integralismo, do qual se afastou ao final da década de trinta do século passado, muito menos do fascismo. Desta feita não encontramos problemas de ordem política e ideológica nas letras de Gustavo Barroso. No entanto é notório que este autor não é contemplado, da mesma forma que outros, nos escritos críticos devido a essa falha, em nosso entendimento, da crítica nacional. Qual, portanto, seria o problema? Supomos que seja esse engajamento nacionalista que tomou conta do autor nos anos trinta do século passado. Mas isso não é um aspecto relevante na abordagem de seus textos, uma vez que, como afirmamos ateriormente, Gustavo Barroso se afasta de vertentes nacionalistas e se engaja nas questões de ordem cultural do seu país, tornando-se uma referência histórica em diversas áreas do conhecimento.

            Nas letras de Gustavo Barroso um ponto de maior atenção é o que diz respeito à aliança entre o que se denomina por memória individual e mamória coletiva, aqui se tem uma fusão destes elementos, algo que culminará em um tema que denominamos de hibridismo memorial. É a presença da memória coletiva tendo a memória individual como agente, ou seja, à medida que expõe as suas vivências, Barroso também se preocupa em repassar ao leitor os costumes, as festividades, a linguagem, a cultura, enfim, tudo que permeava a sua cosmovisão de menino, de adolescente e de adulto no tocante a sua gente. Dito isto, podemos fazer a seguinte pergunta numa tentativa de contraponto: como pode a memória coletiva ser subordinada à memória individual? Não se trata de subordinação, mas de imbricação, ao revelar a sua memória individual, Barroso nos participa a memória coletiva de sua gente. Contudo as principais questões são as seguintes: será que Gustavo Barroso construiu esses valores visando exatamente atingir esse objetivo? E isso se estabelece consciente ou inconscientemente? São questões que levantamos e certamente chegaremos a respostas satisfatórias, caso façamos a leitura de Barroso sem o ranço da politicagem que, infelizmente, também contamina a academia.

E ausência de Gustavo Barroso na crítica histórica, estética e literária de nosso país? Por que destratar um autor de gênio como o é Gustavo Barroso? Seria, conforme mencionamos anteriormente, por conta de seu engajamento político no século passado? Se sim, por que considerar somente a política em detrimento da literatura, da estética, da cultura e da história? Lembramos que Gustavo Barroso é um autor que escreveu textos em diversas modalidades textuais, então, que motivo patente teve a maior parte da crítica nacional para atribuir ao cearense meras notas de rodapé? São questionamentos que merecem, desde já, respostas convincentes. E esse tema muito nos intrigou, quando de nosso conhecimento acerca de Gustavo Barroso, no que se refere aos seus textos memorialísticos e também ao romance Mississipi. São problemas solucionáveis e esperamos contribuir para o debate e, quem sabe, o resgate de um valor estético, histórico e cultural que brota de suas linhas, conforme esta passagem do texto Pedro Malasartes, personagem de domínio público que Gustavo Barroso toma de empréstimo para enriquecer a sua produção, onde também se verifica uma (con)fusão de culturas. “Se a Maria da Paz não sabia cozinhar, em troca ninguém conhecia tão bem quanto ela a vida e as aventuras de Pedro Malasartes, personagem de ficção que lembra o Ulenspiegel africano, o Aleo do Camboja, o Funtidiuduá africano, o próprio Burlador Tenório, mais tarde transformado no D. Juan, porém com todas as características ganhas no sertão por mimetismo folclórico. Ela tornava o burlão astuto, o velhaco endiabrado extraordinariamente simpático.” (Barroso, 2000, vol. III, p. 27).


Fontes consultadas
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ABREU, Márcia (org.). Leitura, História e História da Leitura. São Paulo: Fapesp, 1999.
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AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da literatura cearense. Fortaleza: Edições UFC / Academia Cearense de Letras, 1982.
____________________. Dez ensaios de literatura cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1985.
____________________. Novos ensaios de literatura cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1992.
BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1951.
BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso I – Coração de Menino. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 2000.
_________________. Memórias de Gustavo Barroso II – Liceu do Ceará. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 2000.
_________________. Memórias de Gustavo Barroso III – O Consulado da China. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 2000.
_________________. Mississipi. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 1996.
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo - RS: Editora UNSINOS, 2006.
CAMPOS, Eduardo. Gustavo Barroso – sol, mar e sertão. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1988.
CARVALHO, Francisco. Textos e Contextos. Fortaleza: Casa José de Alencar/Programa Editorial, 1995.
COSTA, Cristina. Arte: resistências e rupturas: ensaios de arte pós-clássica. São Paulo: Moderna, 1998.
GIRÃO, Raimundo. Fortaleza e a crônica histórica. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1983.
GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora – MG: Editora UFJF, 2005.
FILHO, Oswald Corrêa Louzada. Artigo publicado no jornal Movimento em 03/07/1978.
LIMA, Batista de. A Narrativa. Fortaleza: Trabalho digitado, 2000.
______________. Os vazios repletos: ensaios literários. Fortaleza: EDUNIFOR, 2000.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010.
MONTENEGRO, Pedro Paulo. Situações e interpretações literárias. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1996.
MORAIS, Frederico. Arte é o que Eu e Você Chamamos Arte: 801 definições sobre arte e o sistema da arte. Rio de Janeiro: Record, 1998.
MOTA, Leonardo. Sertão alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
OLIVEIRA JÚNIOR, José Leite. O pictórico em Luzia-Homem. 2ª ed. Fortaleza: Links, 1997.
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PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
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SANTOS, Joel Rufino dos. Quem ama literatura não estuda literatura - ensaios indisciplinados. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
SILVA, Odalice de Castro & LANDIM, Teoberto (orgs.). Escritos do Cotidiano: estudos e cultura. Fortaleza: 7 Sóis, 2003.
TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução Beatriz Sidou. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
                                     O EMBARQUE DE YURI


...e o meu filho Carlos Neto
... e a Rosângela, mãe.
Carol, a namorada esposa
Gabi e Bruna, a direita
E mail do Yuri. "Cheguei bem, embora a viagem tenha sido desconfortável ao extremo (eu mal cabia na poltrona do avião, não por causa do meu peso, mas acredite, por causa das minhas pernas). Enfim, correu tudo bem, embora eu tenha chorado algumas vezes durante o voo. Estou caindo de sono, porque o fuso horário é mais longo do que eu imaginava: em Paris serão seis horas a mais. Mas adivinha: estou em Madri, em um pub irlandês chamado James Joyce escutando Beatles, e o idioma aqui é o inglês cantando da Irlanda. Já fumei em uma praça em frente a uma fonte magnífica. Estou na Europa, mas posso dizer que a ficha ainda não caiu: fico olhando as ruas organizadas, os cafés com todas as pessoas fumando e o clima europeu, mas não consigo acreditar. Madri é linda, absolutamente linda... O sol torrando mas um vento gelado".

Beijos, ­Yuri

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"HÁ MUITOS ANOS EU NÃO ESCUTAVA UMA PALESTRA TÃO SÁBIA E ENRIQUECEDORA." Carlos Vazconcelos


FREI BETTO ESTEVE NO CEARÁ (FORTALEZA E BARBALHA) NOS DIAS 9 E 10 DE AGOSTO/2011, CONFORME A PROGRAMAÇÃO ABAIXO. FALOU SOBRE "CRISE DA MODERNIDADE E ESPIRITUALIDADE" E "UMA NOVA VISÃO DOS DIREITOS HUMANOS". A PROGRAMAÇÃO FOI PATROCINADA PELO INSTITUTO FREI TITO DE ALENCAR E ADITAL.


EM FORTALEZA, AS PALESTRAS ACONTECERAM NUMA TERÇA E NUMA QUARTA, E DOIS POETAS DE QUINTA COMPARECERAM PARA CONFERIR.



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                    ASILO

Frederico Régis

A velhice espia a tarde de seu aposento

o dia já não passa
sob o olhar estagnado
do minúsculo ponteiro dos anos

não há mais visita
só a aldrava da vida
incorporada à porta

perto do balanço
de um assento sob a chuva
uma estátua de parasita
submerge no ralo
gritando a palavra caduca

    
                                  

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

                 

                            
                                                                     Capa e projeto gráfico: Raymundo Netto

                      

                             "Uma Luz Vermelha no Bazar"

(Crônica de Pedro Salgueiro para O POVO, Caderno Vida e Arte de 17/8/11)

Há mais de três anos um programa (*) de entrevistas e lançamentos de livros (idealizado pelo grupo de leitura “Abraço Literário” e executado pelo escritor Carlos Vazconcelos) vem mapeando os escritores cearenses com uma competência extraordinária. Todas às últimas terças-feiras de cada mês na Galeria do Teatro Sesc Emiliano Queiroz (Av. Duque de Caxias, 1701) um jovem poeta, uma escritora já consagrada, um teatrólogo de valor, um estudioso da literatura, estará sendo minuciosamente entrevistado pelo competente mediador.

E são iniciativas como estas, que passam quase despercebidas nos nossos meios de comunicação, que fazem a verdadeira história cultural de um povo.

Mais de 40 escritores passaram por lá, do grande Jorge Tufic à estreante Ana Cristina Moraes, da talentosa Inez Figueredo à jornalista Mônica Silveira, do contista Júnior Ratts ao poeta Elias de França, dos crateuenses Luciano Bonfim e Silas Falcão aos professores Batista de Lima e Aíla Sampaio, só para ficar em alguns poucos nomes.

Mas no próximo dia 30 de agosto uma luz vermelha se acederá no Bazar das Letras: o contista e mestrando em Literatura na UFC, Carlos Vaz, vai entrevistar um dos melhores escritores brasileiros da atualidade, o poeta, romancista, estudioso de literatura e principalmente contista Nilto Maciel.

Maciel é o mais importante escritor de sua geração no Ceará, fabulosa geração que nos deu nomes importantes como Gilmar de Carvalho, Airton Monte, Carlos Emílio Corrêa Lima, Barros Pinho, Paulo Veras, Marly Vasconcelos e muitos e muitos outros grandes artistas.

Luz Vermelha que se Azula é um livro marcante, de uma inventividade singular; obra mesmo de mestre da narrativa curta. Onde cada conto fica rodopiando em nossas cabeças, como obra inacabada que procura em nós (leitores) parceiros e cúmplices para sua perfeita execução. Contos curtos que se agigantam em nossas mentes, instigando nossas imaginações a continuarem infinitamente as histórias que ele talha, esmera e lima com precisão de artista consciente de seu valioso ofício.

Conclamo a todos os amantes da literatura a, desde logo, marcarem em seus calendários, botarem lembrete em seus celulares, pregarem bilhetinhos na estante, reservando o dia 30 de agosto (uma terça, às 19h, no Teatro do SESC da Duque de Caxias) para irem saber um pouco sobre a brilhante magia desse que é um dos maiores escritores que o nosso Ceará já produziu.

(*) O projeto Bazar das Letras do SESC, mediado pelo escritor Carlos Roberto Vazconcelos, receberá Nilto Maciel e lançará Luz Vermelha que se Azula, ganhador do Prêmio Moreira Campos de Contos da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Informações: (85) 3452.9032

terça-feira, 16 de agosto de 2011



Dia 29/08, a convite da Câmara Municipal de Jaguaretama, Bernivaldo Carneiro lançará o livro Devaneios, Delírios & Desamores.


                                           Pai, me dê a mão! 

Por Silas Falcão

Conheci Fortaleza quando minha infância tinha nove anos. Era 1966. Meus olhos desassossegaram-se contemplando o bonito nunca visto. Avenidas longas e arborizadas. Semáforos atuantes. Abundância de lojas e ruas. Trancelins de pessoas, olhares, vozes e carros. Tudo era outro. 
Da casa do meu introspectivo tio, leitor de muitas estantes na sala de visita, papai saía de manhã ainda tragando o último gole de café. No bolso, a relação das compras e o talão de cheque. Na sua mão direita, a minha mão empunhada firmemente. Íamos às lojas de confecções onde ele era recebido alegremente. As horas iam diminuindo a lista de compras. Inúmeras vezes me desgarrava do papai, e da porta da loja pesquisava as vitrines enclausurando os brinquedos do meu apetite. Riscado o último item do inventário de compras, e pagamento efetuado, retornávamos aos trancelins do novo mundo. Prédios elevando as pessoas em direção às nuvens. Buzinas de carros e de bocas humanas gritando passagem. Às vezes eu me distanciava um pouco do meu pai. E, assustado, eu corria gritando: “Pai, me dê a mão!”. O desconhecido produz o medo. Talvez seja uma forma de defender a nossa existência. Nossos sonhos. Nossa felicidade. Nosso futuro.
As décadas surgiram. Vim morar em Fortaleza. No início dos anos 90 papai nos assombrou com o câncer. Três vezes por semana eu ia deixá-lo no Hospital do Câncer, para as sessões quimioterápicas. Feito cupins, o câncer ia descompondo seu corpo, enfraquecendo sua voz, seu olhar, seu andar vigoroso, sua vida. Um sábado, pela manhã, ele convidou: “Vamos ao centro?”. Do estacionamento de carros, caminhamos em direção a nova Praça do Ferreira. Ao lado dele recordei a primeira Fortaleza. E tudo era outro. Outro índice. Mais Carros. Mais pessoas em direção às nuvens. Mais ruas. Mais lojas. Mais trancelins. Mais medos.
Reolhei meu pai capiongo, e pedi: “Pai, me dê a mão”.